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Opinião|A caminho

Não há senda milagrosa nem responsabilidade indolor. Cumpre, pois, seguir em frente

Atualização:

“Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder.” Assim Rui Barbosa recomendava o exercício da virtude judicial, no trecho pouco lembrado da Oração aos Moços, de 1920. O texto era dirigido aos formandos do curso de Direito da Universidade de São Paulo, vincado por sede por justiça, especialmente num país que há muito sofre suas desigualdades sociais. No outro lado do Hemisfério, o grande Justice Benjamin Cardozo adicionava a essa receita necessária cautela: “A Justiça não foi feita para ser tomada de assalto, mas para ser conquistada com avanços graduais”.

Em mais de 30 anos de democracia, ao fiscalizar e combater a corrupção, as instituições democráticas seguiram ambos os conselhos: não antepuseram os poderosos aos desvalidos, nem recusaram patrocínio a estes contra aqueles. Fizeram-no gradativamente, cientes do imprescindível respeito à Constituição da República e à segurança jurídica. Passos importantes foram dados desde 1988.

O Congresso Nacional adotou rígidos padrões internacionais de combate à corrupção. Incorporou a Convenção das Nações Unidas. Proibiu a lavagem de dinheiro, a improbidade administrativa, as complexas organizações criminosas. Regulamentou os dispositivos constitucionais que somente admitiam as restrições à privacidade quando autorizadas por juízes, nos casos estabelecidos em lei. Deu meios para que os órgãos de Estado pudessem cumprir sua missão: aprovou orçamentos, restruturações de órgãos, contratações de pessoal e editou a lei de colaborações premiadas.

O Executivo também procurou se pautar pela defesa intransigente da moralidade. Garantiu a atuação independente e imparcial dos principais órgãos de controle. Fez contratações necessárias. Promoveu estudos e intentou dar prioridade às atividades e investigações.

O Ministério Público agiu com independência e levou ao Judiciário os maiores desafios da nossa democracia. Não apenas no que tange à proteção do patrimônio público, mas também na defesa dos direitos das minorias e em todas as questões ambientais.

O Judiciário não faltou a esse chamamento. Julgou quem devia julgar, ora condenando, ora absolvendo – a efetividade da Justiça não se mede pelas condenações, mas pela forma, isenta e imparcial como realiza sua atividade. Levou a termo processos complexos e não teve dúvidas em dar prioridade aos casos mais graves.

É certo que houve e continua a haver problemas. Soam alertas e confirmam-se sinais de obstáculos. Por mais fortes que esses alarmes sejam, não há procedimento inquisitorial que tenha ousio de engatar a marcha à ré; mesmo em sussurro, quando se proíbem os gritos de liberdade, o tropel dos eventos não se detém. A propósito, lembremo-nos de Galileu, “eppur si muove” (“mas se movimenta”), ao reconhecer a força constitutiva dos fatos.

Nada, pois, maior que o vigor da Constituição revivida como o sol nos embates próprios da democracia terrena. Crises trouxeram dissensos, mas não afetaram substancialmente as instituições constitucionais. Ao contrário, serviram para consolidá-las. A Lava Jato, com suas vicissitudes, virtudes e contestações, é parte do aprendizado institucional que essas medidas promovem.

Não há dúvida que estamos diante de novos desafios, que não são exclusividade do Brasil, mas comuns a qualquer país que enfrente a criminalidade econômica. Durante a crise de 2008, diversas investigações alhures foram abertas para apurar o envolvimento de grandes líderes empresariais em possíveis crimes de colarinho-branco. No Brasil, paradoxalmente, esse trabalho talvez tenha sido favorecido pela importância do Estado como agente econômico indutor do crescimento e, consequente, pela possibilidade de dispor de mecanismos de controle mais intensos sobre a atuação do Estado. É evidente que isso também traz seus próprios desafios, notadamente a transposição antirrepublicana de privilégios para a esfera pública.

Somente na democracia e com respeito à Constituição as instituições vão ser transformadas por uma sociedade que não aceita a corrupção nem a miséria de grande parte da população, ou a falta de saúde pública, ou ainda censura ou privilégios de quem quer que seja. Não há senda milagrosa nem responsabilidade indolor. Cumpre seguir em frente.

Há mesmo um conjunto expressivo de processos em curso. Nos últimos quatro anos, mais de uma centena de acordos de colaboração foram homologados pelo Supremo Tribunal Federal apenas no âmbito da Lava Jato. Todos esses acordos continham anexos referentes a investigações que, por força de lei, seguiram no primeiro grau de jurisdição (sem o envolvimento de detentores de foro privilegiado). Com o envio dessa documentação, inúmeras operações foram e ainda são deflagradas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, demonstrando que muito trabalho ainda existe. Ainda tramitam diversas ações penais e dezenas de inquéritos.

Não tem o Direito Penal aptidão para promover, por si só, mudanças como as que são exigidas para diminuir o que agora percebemos como sendo um nível alarmante de patrimonialismo e corrupção. Prefiro pensar que a reação penal é parte de uma mudança de percepção e engajamento, fruto de dinâmicas muito maiores da população brasileira. É necessário transformar a cultura ainda dominante nas instituições, permeadas pelas causas que contaminam poderes, partidos e governos. Uma sociedade aberta, plural e livre deve ser capaz de produzir agentes públicos que tenham a confiança do povo e sejam aptos a cumprir seus deveres sem desvios de conduta.

Cabe a todos nós a tarefa de construir a história da República inaugurada pela Constituição de 1988 tal como a almejou o sonho constituinte. Não há atalhos. Como sentenciou, em discurso memorável, Ulysses Guimarães: “Não roubar, não deixar roubar”.

O trajeto pode ser longo, mas vamos semear e colher.

*MINISTRO DO STF

Opinião por Edson Fachin