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A censura se reinventa

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Por Redação
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Tal qual a Hidra de Lerna, cujas cabeças decepadas se regeneravam em dobro, a censura à imprensa no Brasil demonstra notável capacidade de se renovar. O último episódio ocorreu em Macapá, onde um juiz eleitoral mandou que a S.A. O Estado de S. Paulo, empresa que edita o Estado, retirasse do blog do jornalista João Bosco Rabello, no portal estadão.com.br, um comentário a respeito da eleição na cidade.Na nota em questão, intitulada Um prefeito sob controle judicial, Rabello, diretor da sucursal do Estado em Brasília, informou que o prefeito Roberto Góes (PDT), candidato à reeleição em Macapá, teve sua campanha limitada por restrições judiciais. Ele responde à ação penal por ter sido preso em flagrante, em setembro de 2010, por porte ilegal de arma de fogo. Além disso, ele passou dois meses preso graças à operação "Mãos Limpas", da Polícia Federal (PF), que desbaratou uma quadrilha que atuava em todas as instâncias de poder no Amapá. Rabello informou que Góes cumpre acordo judicial - ele não pode frequentar locais públicos e não pode sair do Estado por mais de um mês sem autorização judicial. Seus advogados, informou Rabello, dizem que ele ainda não foi condenado - sendo, portanto, um "ficha-limpa" - e pode fazer campanha como qualquer outro candidato.Pois bem. A defesa de Góes entendeu que a memória do caso envolvendo o prefeito não era "contemporânea", ou seja, faz parte do passado. Portanto, ao "trazer os fatos à memória do eleitor", como diz a petição à Justiça, o blog de Rabello não tem outro objetivo senão "sujar a figura e a reputação do representante perante o eleitorado". Por essa lógica excêntrica, os advogados do prefeito trabalharam para censurar informações cuja veracidade eles não contestam, mas que consideram impertinentes neste momento. E o juiz eleitoral auxiliar Adão Joel Gomes de Carvalho a aceitou, arrematando o absurdo.Embora espantoso, o caso de Macapá não é isolado. Em 2010, um juiz eleitoral do Tocantins, Liberato Póvoa, impôs censura prévia a diversos veículos de comunicação, entre eles o Estado, para impedi-los de publicar informações sobre possíveis fraudes no governo de Carlos Gaguim (PMDB), então candidato à reeleição. A coligação que apoiava o governador alegou que o noticiário sobre o escândalo favorecia a oposição, "constituindo uso indevido dos meios de comunicação". O desembargador Póvoa - que teve a mulher e a sogra nomeadas por Gaguim para cargos públicos - considerou as notícias "difamatórias".Para estabelecer a censura, Póvoa invocou o "segredo de Justiça", conceito constantemente deturpado para banalizar a mordaça. Foi esse contorcionismo jurídico que embasou a decisão do desembargador Dácio Vieira, do Distrito Federal, de impedir o Estado de publicar notícias sobre a investigação da PF acerca de supostas ilegalidades cometidas pelo empresário Fernando Sarney, filho do senador José Sarney. Tal censura perdura há mais de 1.100 dias.A situação da liberdade de imprensa no Brasil ainda está longe de se comparar à de vizinhos populistas como Venezuela, Equador e Argentina, nos quais a intimidação da imprensa é notória e cotidiana. No entanto, abundam no Brasil os casos de censura judicial,como demonstrou Paulo de Tarso Nogueira, integrante do Comitê Executivo da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), na última Assembleia-Geral da entidade. Ocorrem vetos absurdos não somente em relação ao noticiário supostamente negativo contra este ou aquele político, mas também contra a divulgação de pesquisas eleitorais supostamente desfavoráveis a determinadas candidaturas, como aconteceu neste ano no Ceará e em Mato Grosso do Sul. "É crescente a ampliação do poder discricionário de magistrados, especialmente os de primeiro grau, no julgamento de ações de antecipação de tutela e direito de resposta", disse Nogueira, enfatizando o óbvio atentado à liberdade de imprensa.Por ocasião da censura no Tocantins, o professor de jornalismo Eugênio Bucci, da USP, perguntou: "O que impede amanhã que toda a imprensa seja censurada?". Como demonstra agora o caso de Macapá, tal questão continua perigosamente válida.