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Opinião|A Constituição de 1988 e a crise fiscal

Consequências do custo social do estatismo jurídico têm sido funestas para o País

Atualização:

A atual Constituição federal completou 30 anos de vigência no dia 5 de abril. Não obstante os defeitos que possa apresentar, ela representa um marco importante na História do País: o fim de um ciclo autoritário e início de uma nova experiência democrática, que se pretende duradoura.

Após o generalizado desejo de mudança do regime e a necessidade de um novo ordenamento constitucional, o problema que se apresentava na ocasião não era mais desejar a democracia, mas sim defini-la e implementá-la. Em outras palavras, todos eram a favor da democracia.

Mas qual democracia?

Convencidos de que viviam numa época de total mudança, os constituintes, insatisfeitos com a realidade, acreditavam ser possível rejeitar radicalmente a Constituição anterior e modificá-la por ato de vontade. Os constituintes confundiram o modelo de democracia, enquanto conceito, com a realidade fática. Sendo a democracia um produto histórico, ela só se torna possível desde que existam as condições e os pré-requisitos, subjetivos e objetivos, para o seu bom funcionamento.

No plano da idealidade, encontramos no texto este fabuloso catálogo de utopias: garantia de existência digna a todos (artigo 170); fixação de requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural (artigo 186); configuração do crime de usura desde que a cobrança de juros ultrapasse 12% ao ano (artigo 192, § 3.º); garantia de saúde para todos (artigo 196); garantia de atendimento ao ensino fundamental, incluídos transporte e alimentação (artigo 208); transporte urbano gratuito para os idosos de mais de 65 anos (artigo 230); garantia de um salário mínimo para cada portador de deficiência e idoso pobre (artigo 230); direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225); prestação de assistência social a quem dela necessite, independentemente de contribuição social (artigo 203); garantia à criança e ao adolescente do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de pô-los a salvo de toda forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigo 227).

Também não se eliminaram as características corporativistas das Constituições anteriores: na verdade, agravaram-se.

Em termos de corporativismo, o texto constitucional é rico de exemplos: empresas estatais (artigos 21, X, XI, XII); magistratura (artigo 93); representação classista (artigo 111, § 3.º, inciso I e § 2.º.); Ministério Público (artigo 123, § 3.º e § 5.º); Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (artigo 131, caput e § 3.º); Polícias Rodoviária e Ferroviária Federal (artigo 144, incisos II e III); Polícia Civil (artigo 144, § 4.º); médicos (199, § 3.º); universidades estaduais (artigo 218, § 5.º); notários (artigo 236); fazendários (artigo 237); delegados de polícia (artigo 241); escolas oficiais (artigo 242, caput); servidores públicos civis (artigo 19); Ministério Público do Trabalho e Militar (artigo 29, § 4.º); índios (artigo 231, § 2.º e 3.º); empresariado nacional (artigo 171, § 1.º); advocacia (artigo 133) – além de outros.

Da leitura dessa imensa lista se constata que, a rigor, todos os segmentos da sociedade efetivamente organizados foram aquinhoados com favores e benesses legais: desde a tanga até a toga.

De fato, nossos constituintes inseriram no texto um conjunto de direitos sociais em escala nunca vista anteriormente. A lista é exaustiva: abarca os campos do trabalho (artigo 7.º), da seguridade social (artigos 194 a 196), da saúde (artigos 201 a 203), da assistência social (artigos 203 a 205), da educação (artigos 205 a 214), da cultura (artigos 215 a 217), do desporto (artigos 217 e 218), da proteção à família, à criança, ao adolescente (artigos 226 a 231) e dos índios (artigos 231 e 232).

Esse paternalismo adquiriu maior evidência no Capítulo da Ordem Social, que trata dos direitos dos trabalhadores.

Nas palavras de Roberto Campos: “A preocupação dos constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos, e sim garantir mais direitos para os já empregados. Legislou-se para pouco mais da metade dos trabalhadores, porque o resto está na economia informal, à margem da lei e das garantias. Nossa Constituição, sob aparência benfeitora, é uma conspiração dos já empregados contra os desempregados e os jovens”.

Na verdade, desejosos de passar o Brasil a limpo e resolver todos os seus problemas, acabaram por transformar a Constituição num grande e ambicioso programa assistencial do Estado. Para satisfazer a largueza desses direitos, e atender a todas as demandas sociais, nossos constituintes viram no próprio Estado a fonte de recursos. Acontece que o Estado é uma abstração; seus propósitos são, na verdade, os propósitos dos políticos que o dirigem. Vem a ser, de fato, a glorificação de uma minoria governante.

Outra lamentável confusão dos nossos constituintes foi não distinguir a importante diferença entre garantias onerosas e não onerosas, entre aspirações dignas e direitos adquiridos.

Por exemplo, o capítulo sobre direitos individuais é um real avanço. Lista justas liberdades democráticas e nenhum ônus. Mas os chamados avanços sociais representam custos: sobre o total da massa trabalhadora pesam os custos do desemprego; sobre uma boa parte das empresas pesam os custos da sobrevivência; sobre os consumidores pesam os custos do aumento no preço dos produtos; sobre o Estado pesam os custos pela perda da receita; e sobre a economia do País pesam os custos pela impossibilidade de competir no mercado internacional globalizado.

Em conclusão, a partir da promulgação da Constituição, as consequências do custo social do estatismo jurídico têm sido funestas para o País, principalmente sob três aspectos: o crescimento da burocracia, o estímulo à voracidade arrecadatória e a crise fiscal do governo.

*Desembargador Federal do Trabalho aposentado (TRT 2º região), é presidente da Academia Internacional de Direito e Economia (aide@aide.org.br)

Opinião por Ney Prado