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A costumeira chantagem

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Por Redação
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Na ressaca da ditadura militar, a Constituição de 1988 foi escrita com a preocupação de aparar os amplos poderes que o Executivo tinha se concedido durante o regime, em especial mediante a Carta de 1967. Por um ato institucional, o general Castelo Branco, o primeiro chefe de governo da nova ordem, atribuiu a um expurgado e acoelhado Congresso a função de institucionalizar a chamada Revolução de 1964, conforme um projeto de Constituição saído pronto e acabado das entranhas do Planalto. O texto, aprovado praticamente como foi recebido, transformou o Executivo no "mais igual" dos Poderes do Estado. Exemplo dessa centralização hierárquica, o governo se outorgou o monopólio da edição de emendas constitucionais.Não admira, portanto, que os constituintes livremente eleitos duas décadas depois se empenhassem em ir além da varrição do entulho autoritário, como se dizia à época. A ideia mestra da Constituinte era não apenas enquadrar o Executivo na moldura do Estado Democrático de Direito, reequilibrando a balança das instituições nacionais, mas também dar vida nova à Federação, delegando competências aos Estados e municípios. E tudo isso guiada pela premissa de que a democracia política e a descentralização administrativa deveriam abrir caminho à redução das iniquidades sociais. Acreditavam os constituintes que a Constituição poderia ser a carta de alforria da população pobre e o salvo-conduto para o seu acesso à saúde, educação, moradia e demais bens públicos dos quais vivia apartada.Isso se traduziu diretamente na política orçamentária federal. Desde então, os governos de turno tiveram de conviver com um padrão de engessamento do destino a ser dado às receitas que lhes deixava pouca margem de manobra no uso dos recursos. Como que a afrouxar essa camisa de força, os desembolsos previstos na proposta orçamentária original ou a ela acrescidos pelas emendas parlamentares são meramente indicativos - salvo quando se tratar de vultosas rubricas pétreas, como a paga do funcionalismo e o financiamento da Previdência, os investimentos pré-fixados para a educação e a saúde e as transferências constitucionais aos entes federativos para esses mesmos fins. O impulso modernizador do Estado, no bojo do Plano Real, levou o governo do presidente Itamar Franco a instituir, por iniciativa do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e com aprovação do Congresso, um mecanismo para tornar mais flexível a execução orçamentária. A Desvinculação das Receitas da União (DRU), como viria a ser designado, estipula que o Executivo federal pode gastar como queira 20% da arrecadação. Em 2012 isso dá R$ 62,4 bilhões. O instrumento deve ser renovado por emenda constitucional. A DRU vigente expira em dezembro. Eis uma preciosa oportunidade, a enésima e de forma alguma a derradeira, para os políticos exercitarem a sua propensão para a chantagem.É a imprecisamente denominada base parlamentar governista que saca da faca para encostar no pescoço da presidente: ou ela acede em cacifar 61% do valor total das emendas individuais apresentadas pelos congressistas - o equivalente a R$ 4,7 bilhões - ou a DRU só será prorrogada por dois anos, no máximo, e não por quatro, como seria normal. Nessa hipótese, teria de ser renovada em plena campanha presidencial. Como de costume, dinheiro para obras não é tudo para os extorsionários. Demandam outros meios de engordar o seu patrimônio político: o preenchimento de cargos vagos em órgãos como a Sudene, Chesf, Codevasp e Dnocs, para citar apenas os do Nordeste. "A hora é esta, temos de estressar o governo até o limite", diz com cínica naturalidade um parlamentar que se diz "aliado do Planalto" e se esconde sob o anonimato.A hora é esta e o sistema é este - o modelo de perversão política que confronta, caso a caso, o governante não com a oposição, mas com as bancadas dos partidos que se coligaram para elegê-lo. Aos seus oportunistas integrantes, ávidos pela barganha, pouco se dá que a presidente Dilma Rousseff - ou quem quer que estivesse hoje no seu lugar - precisa da DRU como uma ferramenta adicional para limitar os danos ao Brasil da crise econômica internacional que não cessa de se agravar.