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Opinião|A crise e o debate sobre a moralidade pública

Atualização:

Apesar da respeitabilidade da nova equipe econômica, há dúvidas sobre a capacidade do governo Temer de aprovar medidas para enfrentar a crise fiscal. Além das resistências corporativas para a remoção dos entraves estruturais da economia, o temor é de que faltem aos seus articuladores políticos – e àqueles cujo apoio tentam obter – integridade ética e autoridade moral para colocar em novos termos as relações entre o Executivo e o Legislativo. Mas, se não tivesse nomeado ministros indicados por partidos aliados que não fossem investigados por ilicitudes, estaria o governo – diante de um sistema partidário tão fragmentado – em condições de obter condições mínimas de governabilidade? Até que ponto basta a bandeira ética para acabar com a corrupção, equilibrar as finanças públicas e levar o País a voltar a crescer?

Entre 1999 e 2001, quando chamou para seu ministério algumas personagens com folha corrida, em vez de biografias virtuosas, FHC sabia que, sem esse tipo de gente, não teria como travar o impeachment então pedido pelo PT. Vários professores da USP de sua geração o acusaram de cinismo e imoralidade, causando perplexidade e ira. Um deles o classificou como um dirigente “desbussolado em sua conduta ética, como se a incapacidade de enternecimento ou indignação redundasse numa espécie de loucura moral” e numa “personalidade insensível às misérias da condição humana”.

A contundência das acusações levou uspianos próximos de FHC a defendê-lo de forma veemente. Um de seus companheiros de trajetória acadêmica apresentou um argumento polêmico: por ser um jogo político aberto, a democracia só funcionaria desde que haja certa tolerância à manipulação de regras e à dissimulação de interesses – afirmou. Ao contrário do xadrez, em que as regras são bem definidas e as peças seguem movimentos estabelecidos, a política é um jogo impreciso que está sempre construindo suas normas, razão pela qual há uma indefinição essencial no próprio jogo, pois é nela que germinariam as novas regras. Na medida em que o jogo envolve riscos de resultados indesejados, a política se defronta com a politicagem e trocas de favores que tendem a escapar ao controle de governantes. A dinâmica do jogo político precisa, assim, de um espaço de tolerância para desvios éticos, sem o qual é impossível governar. Para governar, os governantes têm de cruzar a zona cinzenta de amoralidade.

Depois de acirradas críticas dos dois lados, a polêmica arrefeceu e ressurgiu em 2005 com o mensalão, mas com sinais trocados. Colegas uspianos de FHC acusaram Lula de imoral e cínico, enquanto alguns defensores deste alegaram que, num sistema partidário fragmentando e protagonizado por fisiológicos e clientelistas, ninguém consegue governar sem pôr a mão em coisa suja. Pronunciada por artistas vinculados ao PT, a expressão foi mais vulgar, mas acompanhou a tese da zona cinzenta da amoralidade.

O debate ressurgiu outra vez, mas agora num contexto ainda mais complexo. A defesa da ética no trato da coisa pública pelo PT, entre 1999 e 2001, discrepou do modo como o partido exerceu o poder, entre 2003 e 2016. A tese da zona cinzenta da amoralidade foi fortalecida depois que Lula, relegando os argumentos dos intelectuais que o defenderam em 2005 com base na ideia de superioridade política e moral de sua agremiação, afirmou que “nós fizemos o que todo mundo faz”.

Essa vida política em que todos seriam iguais foi, no período, marcada por duas novidades. Por um lado, surgiram novas formas de ação política buscando, a partir de manifestos de indignação e de um moralismo difuso, canais inéditos de mediação com o poder. Por outro lado, a corrupção tornou-se sistêmica, com o advento de um aparato paralelo ao Estado legal, funcionando fora do alcance dos mecanismos tradicionais de controle. Um aparato que, aliado a um cartel de empreiteiras, desenvolveu sofisticados mecanismos de desvio e lavagem de dinheiro público, esquemas de ocultação de transações financeiras espúrias e estratégias de elisão de identidades, além de irrigar partidos em troca de apoio. E ainda cooptou movimentos estudantis e sociais para que, a pretexto de reivindicar demandas legítimas, como reforma eleitoral, exprimissem ideias destinadas a dar roupagem ideológica a essa forma de exercício do poder.

O desafio agora é levar o Estado legal a se sobrepor ao aparato paralelo, o que recoloca na ordem do dia o tema da moralidade pública. A reafirmação de um Estado legal sobre esse aparato reinclui na agenda a questão da preservação de um espaço de tolerância para certas faltas, como condição para o funcionamento das instituições. Também exige menor complacência com o cruzamento da zona cinzenta da amoralidade. Investigados pela Lava Jato costumam alegar que não cometeram atos ilícitos, esquecendo-se de que há condutas eticamente reprováveis que não são abarcadas pela legalidade.

É preciso rever a percepção da coisa pública, pois comportamentos subestimados no passado agora não são mais tolerados. A miséria moral revelada pela Lava Jato nos tornou mais críticos com o que era aceito em outro momento. Hoje se vê com clareza que, quando transige com pequenos delitos, a política tende a se desfigurar, perder legitimidade e até se tornar criminosa. Pequenos desvios éticos podem descambar em ilicitudes generalizadas. No calor da polêmica entre intelectuais uspianos, anos atrás, discutia-se quem tinha razão – os que consideravam a amoralidade indispensável ao funcionamento do presidencialismo de coalizão ou os éticos, para quem a moralidade pública dependeria da qualidade das instituições, como expressões concretas do lugar e do sentido da lei. Em meio à atual crise, cujas ambivalências permitem indagar se o País está próximo de uma regeneração democrática ou na antecâmara de novas aventuras populistas, a retomada dessa discussão é sinal de realismo político.

*José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLAW)

Opinião por José Eduardo Faria