Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|A difícil arte da generosidade

Virtude fundamental para ressignificar a efêmera passagem por este vale de lágrimas

Atualização:

O século 21, que o sociólogo Domenico de Masi nos acenara como se fora o período feliz do ócio prazeroso, com redução ao mínimo das horas de trabalho e sobra para o deleite artístico, o entretenimento ou mero ócio, na verdade oferece um quadro bem diverso. Não só o tempo é cada vez mais escasso – há quem acredite que o movimento de rotação da Terra foi acelerado –, como agora se trabalha mais. Muito mais.

Enquanto o século passado enfrentou duas grandes guerras e no consequente discurso a humanidade abominou a solução cruenta para os conflitos, nestes tempos que correm continuam as agressões, os atentados, o terrorismo, o uso de armas químicas e nucleares. Roncos fortes de nações que fazem questão de proclamar sua soberania e se consideram imunes, embora patente sua vulnerabilidade.

O fundamentalismo cego não hesita em matar inocentes. Crueldade difusa, no cenário macro e no ambiente micro. Mesmo quando desnecessário o uso da maldade para a obtenção de resultados ilícitos, não existe pudor ou escrúpulo, de parte dos infratores, no abuso da força ou na manifestação impiedosa dos mais inferiores instintos.

O diagnóstico para esta sociedade mundial enferma é também plural, pois os consensos são raros. Inegável o reconhecimento de que os valores desapareceram ou estão em acelerado declínio. As instituições estão frágeis e a fragmentação de pilares como legitimidade, comprometimento e pertencimento gera um clima de angustiante perplexidade.

Não adianta fugir ao real. A crueza está à espreita. Ninguém pode estar seguro sobre o porvir. Os prenúncios não são animadores. Ainda assim, é urgente reagir.

Como é que se enfrentam dias plúmbeos?

A conversão há de ter início no tribunal inevitável da consciência. Mentes sensíveis não se podem sentir desobrigadas de procurar caminhos. O espaço em que a cada ser humano foi conferido vivenciar sua aventura terrena pode ser melhor se houver foco, determinação e vontade. Não é suficiente a intenção proclamada e não concretizada em ação. Mas toda e qualquer atuação no sentido do bem é parte imprescindível do resgate da esperança.

Ser humano algum poderá ser feliz, estar inteiramente em paz consigo mesmo, se permanecer isolado ou circunscrito ao pequeno círculo de sua intimidade. Tudo o que acontece ao redor afeta o rumo e o ritmo de nossa trajetória. Enquanto existir um semelhante excluído, a sofrer injustiça, sentir aflição ou dor, não haverá descanso para quem se considera humanista e leva a sério o respeito à dignidade da pessoa humana. Esse o supraprincípio norteador de nosso ordenamento, balizador de todas as condutas, sejam públicas, sejam as atinentes à vida privada.

A implementação desse comando fundante – encarar cada ser humano como pessoa revestida de ínsita dignidade – não necessita de escala para valer. Ele é bastante em si. Não se está a falar em grandes heroísmos. São suficientes pequenos gestos. Mas direcionados ao mesmo alvo. Basta a singeleza da boa vontade, fruto de uma reflexão consistente. Qual é o nosso papel no curto lapso que nos é dado permanecer sobre a face da Terra? Temos uma missão a cumprir ou somos objeto de um fatalismo inconsequente, que nos condenou a nascer neste país, nesta época, nesta família e nas demais circunstâncias que nos condicionam e limitam?

Dentro da esfera de abrangência que as circunstâncias nos reservaram, o que depende de nós para ser mantido ou para ser modificado nas estruturas do pensamento, que direcionam nossos hábitos? Temos uma esfera de liberdade para tentar transformar uma parcela do mundo, ainda que pareça insignificante, como o nosso próprio destino?

Há muita coisa que um indivíduo pode fazer para reduzir, ainda que em pequena dimensão, a enorme carga de atribulações que onera todos os viventes. Alguns destes, muito mais penalizados do que outros.

Pense-se no compromisso extraível de uma concepção formulada pelo constituinte de 1988, a respeito da mais séria questão posta à consideração dos brasileiros. A educação!

Direito de todos, educação é dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade – artigo 205 da Constituição da República. Ninguém está excluído de participar desse processo redentor e essencial à solução de todos os problemas brasileiros. Absolutamente todos! Violência, emprego, saúde, ambiente, moradia, tudo encontra resposta satisfatória se houver adequado preparo das novas gerações.

Todos nos situamos numa destas três esferas de responsabilidade: ou somos família, ou somos Estado, ou somos sociedade. E temos obrigações explicitadas pelo constituinte para com as crianças e jovens.

Por que não dispor de algum tempo, por menor que pareça, para acompanhar o desenvolvimento do aprendizado de um só estudante? Por que não participar do projeto Escola da Família, que aproxima o núcleo familiar e a comunidade da escola pública, centro de convergência dos superiores interesses daquele espaço de convívio?

Há pessoas e entidades privilegiadas que usufruem o êxito propiciado pelo mercado e poderiam fazer mais do que outros. Todavia poucos são os que, embora nessa condição, respondem positivamente ao convite de participação na vida escolar. Os que atendem podem testemunhar que em regra recebem mais do que ofertam. Saber-se importante para transformar o destino de um educando é prêmio significativo para os homens de boa vontade, que já foram chamados no decorrer da História a acolher a verdade e mudar a rota do individualismo egoísta.

Se o século 21 não nos presenteou com a disponibilidade plena do tempo nem trouxe a merecida ampliação das oportunidades de prazer, não nos privou do exercício da generosidade. Arte maior, virtude fundamental para validar uma vida e para ressignificar a frágil e efêmera passagem de cada pessoa por este vale de lágrimas.

*Secretário da Educação do Estado de São Paulo

Opinião por José Renato Nalini