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Opinião|A disparada e as pedaladas fiscais

Atualização:

A presidente Dilma segue nas suas batalhas para permanecer no poder. Numa das que está em posição vulnerável é a da avaliação de suas contas de 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Por duas vezes pediu prazo adicional de 15 dias para completar a defesa. 

Para melhor entender essa batalha procurei ir além do noticiário a respeito e procurar detalhes do assunto, em particular a legislação sobre ele e o relatório preliminar do TCU acerca das contas federais de 2014, assinado pelo ministro Augusto Nardes. Esse relatório pode ser encontrado em portal.tcu.gov.br/contas/contas-do-governo-da-republica. E aí na conexão Contas do Governo, exercício de 2014. Ela dá acesso ao documento, tanto em fichas-síntese como o texto completo, de 602 (!) páginas. 

No noticiário, recebem maior destaque as chamadas pedaladas fiscais, expressão que designa o insuficiente suprimento de fundos a bancos estatais para pagamento de despesas do governo federal. Por exemplo, à Caixa, para gastos do programa Bolsa Família, do seguro-desemprego e do abono salarial. 

Em outras palavras, o Executivo federal entrou no “cheque especial” e em seus saldos devedores, o que não é admitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Lei Complementar n.º 101, de 4/5/2000. Essa proibição está no seu artigo 36: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. 

Quanto à defesa da presidente, neste caso o noticiário revelou que seus assessores usam dois argumentos principais em favor das pedaladas: que esses adiantamentos não caracterizariam operações de crédito e que outros governos também recorreram à mesma prática, ainda que sabidamente em muito menor escala. 

Quanto ao primeiro, uma questão que me interessava era se houve a incidência de juros e encargos, pois como economista e ex-bancário isso me bastaria para caracterizar os adiantamentos como operações de crédito. Eis o que diz o relatório do TCU: “As transações em apreço apresentam características de operações de crédito, tais como a duração de tempo e a incidência de juros e encargos”.

O segundo argumento, de justificar o malfeito porque outros também o fizeram, serviria para justificar qualquer coisa.

Se pegasse, não existiram prisões e prevaleceria a lei da selva. No âmbito dos malfeitos governamentais, não pegou no mensalão e não vejo como pegar neste caso, assim como não vem pegando no petrolão.

Ainda que com menor destaque no noticiário do que as pedaladas, entre outros deslizes a gestão das contas públicas federais revelou o que chamo de disparada fiscal ou da gastança governamental, com consequências maiores e mais nefastas, pois foi a principal determinante da situação trágica a que foram levadas as contas públicas federais no ano passado. Dessa situação resultou a necessidade do ajuste fiscal “em andamento”. O desajuste é tão imenso e politicamente complexo que não anda com a dimensão e a velocidade necessárias. Com isso se tornou ele mesmo um importante ingrediente da própria crise econômica, esta realmente caminhando, pois a desconfiança que provoca nos agentes econômicos prejudica a atividade produtiva e leva a desdobramentos graves em mercados específicos, como o da taxa de câmbio.

Foi essa disparada que levou o governo a apresentar um insólito resultado negativo para seu resultado primário (receita menos despesas, destas excluídos os juros da dívida pública) em 2014, ao lado de um déficit final ou nominal que praticamente dobrou de magnitude. Ou seja, não conseguiu pagar nem uma parte desses juros, o que foi uma das causas do enorme déficit final apresentado. Imagine o leitor se nas suas finanças pessoais não estivesse pagando a amortização de sua dívida, nem sequer um pedaço dos juros...

Quanto a essa disparada, primeiro o relatório do TCU lembra que a LRF exige que o governo tenha metas para seu resultado primário ou para o final ou nominal. Em seguida, lembra o artigo 9.º da mesma lei: “Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal (...), os Poderes e o Ministério Público promoverão (...) limitação de (...) movimentação financeira (...)”. E o parágrafo 3.º do mesmo artigo diz que se o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação, o Poder Executivo é autorizado a realizá-la.

Mas, prossegue o relatório, “(...) as estimativas dos decretos (do Executivo, acrescento) de programação financeira de 2014, em relação à receita, foram todas superestimadas (...)”. E as “(...) as estimativas da despesa e do déficit previdenciário foram todas subestimadas (...). Assim, além de atuar de forma temerária ao cumprimento da meta, ‘descontingenciando’ o orçamento federal (...), o Poder Executivo (...) agiu com violação (...) da LRF, pois a realização da receita à época não comportaria o cumprimento das metas estabelecidas (...)”.

Mais à frente o relatório conclui ser “importante registrar que se trata de irregularidade de responsabilidade direta da Presidente da República, (...) em vista do (...) art. 84, inciso V, da Constituição Federal, segundo o qual compete privativamente à Presidente da República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei.” 

Há ainda outros aspectos do assunto que não tenho espaço para abordar aqui. Mas eles não prejudicam a minha conclusão de que as irresponsabilidades fiscais da presidente da República estão bem caracterizadas, ainda que não tenha a menor ideia do que se seguirá, pois são muitas as alternativas político-institucionais. E tampouco está definido um caminho que seja eficaz para conter os danos, impedir outros no futuro e sair dessa tragédia fiscal ainda sem luz no fim do túnel – nem mesmo de vaga-lumes.

*Roberto Macedo é economista (UFMG, USP E HARVARD), consultor econômico e de ensino superior

Opinião por Roberto Macedo