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Opinião|A face oculta

A democracia brasileira está ameaçada. O que a Lava Jato está revelando é um propino-Estado

Atualização:

A Lava Jato desvendou a face oculta da democracia brasileira, tal como foi implementada na última década. Uma organização criminosa, disfarçada de ideias esquerdistas, tomou de assalto o Estado, trabalhando em benefício próprio e no de seus comparsas, que enriqueceram nessa apropriação partidária do público. Seria simplesmente hilário o fato de os responsáveis de tal apropriação dizerem que o atual governo subtrai “direitos”, não fosse o caso de alguns ainda lhes darem ouvidos. Contentam-se estes com o velho chavão de não haver problemas com a Previdência, bastando repetir-lhes as velhas fórmulas carcomidas que levaram o País a este buraco. Foram precisamente os erros passados que conduziram o País a este descalabro de depressão econômica e social, para não dizer psicológica dos que perderam o emprego e nada têm a oferecer em casa a seus filhos. Os autores desse desastre já deviam ter sido responsabilizados, condenados e presos. Posam, entretanto, de “oposição”, num claro sintoma de podridão do sistema político. Um fato merece ser ressaltado, por ser revelador de certa concepção de democracia. Quando do enterro da ex-primeira-dama, Lula recebeu pêsames de vários adversários, por ele até considerados inimigos, entre eles Fernando Henrique. Tal ato de solidariedade veio acompanhado de “propostas” de diálogo em nome do Brasil e da democracia, como se o líder de uma organização criminosa fosse um interlocutor privilegiado. No caso, parece até que as ideias esquerdistas comuns de antanho orientariam esse tipo de diálogo, como se elas pudessem encobrir os crimes perpetrados contra o Estado. Trata-se de uma nuvem de fumaça que deixa transparecer um diagnóstico completamente equivocado do que aconteceu com o Brasil nos 13 anos de governo lulopetista. Não houve “erro político”, mas sequestro da representatividade política e dos bens dos contribuintes. É uma tentativa de reatar com um passado que simplesmente não existe mais. Mas eles não estavam sozinhos nesse empreendimento, contaram com o apoio da maioria dos partidos políticos, destacando-se o PMDB, o PP e o PDT, numa salada partidária de causar inveja aos maiores chefs pela diversidade ideológica e pelo fisiologismo. A nova lista de Janot é de estarrecer até os mais incautos, por envolver seis ministros atuais mais quatro anteriores do atual governo, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, quatro de seus ministros, incluindo dois da Fazenda. A lista estende-se, agora, também a dirigentes do PSDB, incluindo potenciais candidatos à Presidência da República. Isso sem contar os presidentes da Câmara e do Senado e um número expressivo de senadores e deputados. A classe política foi literalmente dizimada, deixando de exercer a sua função de representatividade. Como pode uma democracia sustentar-se sem uma adequada representação política, respaldada por partidos idôneos e com ideias de nação? A situação é bem mais problemática do ponto de vista institucional porque a linha sucessória presidencial será atingida se os presidentes da Câmara e do Senado forem condenados. Não se trata de fazer um juízo de valor sobre essas pessoas, que têm seu direito legítimo de defesa, mas de apontar uma questão da maior gravidade, qual seja, a de uma democracia que pode tornar-se acéfala. Uma sociedade sem alternativas pode rumar para aventuras, agarrando-se a qualquer pessoa que lhe apareça como uma âncora, por mais falsa que seja. A sociedade hoje percebe a classe política como um bando de corruptos, não faz mais a necessária distinção entre bons e maus. Coloca-os todos no mesmo saco, como se não houvesse diferença a ser feita. Por seu lado, parlamentares e ministros em nada ajudam, pois pensam apenas em sua própria salvação. Algo chamado Brasil ou bem público simplesmente desaparece do horizonte. O sucesso do governo Temer torna-se tributário da aleatoriedade de tais movimentos, pois estratégia vem a significar sobrevivência. Exemplo particularmente gritante se encontra nas mais diferentes tentativas de anistia (ou melhor, autoanistia, o que seria logicamente contraditório) do caixa 2, ampliando-a para as doações eleitorais legais, independentemente de sua origem. Os envolvidos na Lava Jato procuram tão somente safar-se de condenações e da cadeia. Evidentemente, cada caso é um caso, cuja decisão cabe aos juízes e ministros, que discriminam as responsabilidades individuais, assegurando a todos o direito à legítima defesa. Contudo não estão clamando pelo Estado Democrático de Direito, mas pelo “estado de salvação individual”. Pretendem ocultar todo o sistema de corrupção que os levou ao poder. É como se os crimes da Odebrecht e de outras empreiteiras e dos frigoríficos fossem corriqueiros na vida brasileira. O anormal mudou de nome. Façamos a seguinte analogia. Se o narcotráfico tivesse irrigado as campanhas eleitorais, os partidos e os bolsos dos políticos, não se deveria investigar a origem dos recursos? Seria tudo considerado legal, porque devidamente declarado aos tribunais eleitorais? Os Odebrechts seriam simplesmente substituídos pelos Fernandinhos Beira-Mar e tudo estaria “normal”? A situação da democracia brasileira é deveras preocupante. O que a Lava Jato está mostrando é a existência de um propino-Estado, equivalente a um narco-Estado, numa versão mais branda e, aparentemente, politicamente aceitável. Não convém, porém, desconhecer a gravidade da situação, edulcorada pela cordialidade da classe política entre si, que dá as costas para o País. Há um divórcio crescente dessa classe política em relação à sociedade, cuja opinião é de condenação moral generalizada. Ninguém é poupado. E a democracia encontra-se ameaçada se passos importantes não forem dados no sentido da moralidade pública pelo governo, pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. *Professor de filosofia na UFRGS; e-mail: denisrosenfield@terra.com.br