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A generosidade da Justiça

Interpretando de modo equivocado o princípio da tripartição dos Poderes, os Tribunais de Justiça acostumaram-se a criar suas próprias políticas salariais, o que levou muitos deles a ter uma média salarial quase três vezes superior à dos Executivos estaduais

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Por Redação
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Numa iniciativa inédita, o governo do Amapá impetrou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (APF 454) com o objetivo de obrigar o Tribunal de Justiça do Estado a pagar com suas próprias verbas orçamentárias o aumento salarial de 16,67% que concedeu aos seus serventuários. O relator do processo é o ministro Ricardo Lewandowski. O problema começou quando o Tribunal de Justiça ampliou, por decisão administrativa, o regime de horas trabalhadas dos serventuários, sem o proporcional aumento da remuneração. Eles recorreram, pedindo o pagamento da diferença, a Corte acolheu a reclamação e a conta foi encaminhada ao Poder Executivo. Segundo os procuradores do Estado do Amapá, a decisão de impor ao governo um ônus que não é de sua responsabilidade causou um impacto de mais de R$ 60 milhões nos cofres públicos. E isso teria comprometido o planejamento orçamentário de 2017, obrigando o governo a deslocar parte do orçamento previsto para outras finalidades, pondo com isso em risco a continuidade de serviços essenciais, nas áreas de saúde e educação. Por isso, depois de alegar que os desembargadores não tiveram o cuidado de avaliar as consequências econômicas das decisões que tomaram tanto no plano administrativo como no plano judicial, as autoridades fazendárias estaduais querem que a diferença relativa ao aumento de 16,67% nos salários dos servidores passe a ser descontada do duodécimo do Poder Judiciário. “O ato de condenação do Executivo ao pagamento das execuções intentadas pelos servidores do Judiciário fere a autonomia daquele Poder no que se refere à sua gestão”, afirmaram os procuradores. Também disseram que, pela Constituição, um Poder não tem competência para transferir seus encargos financeiros, contratuais e tributários. Pediram, ainda, que os dirigentes do Judiciário – e também os do Legislativo e do Ministério Público – fiquem com a responsabilidade de arcar com as decisões que beneficiem financeiramente seus servidores. Se acolher as pretensões do governo do Amapá, o Supremo abrirá um precedente importante para fechar as torneiras abertas no Judiciário, em matéria de gastos com salários e penduricalhos. A questão é clara: embora os Três Poderes tenham autonomia administrativa e independência funcional, o cofre é um só e a responsabilidade sobre o que entra e sai é do Executivo. Assim, do ponto de vista da gestão pública, não faz sentido que o controlador do caixa seja surpreendido com a obrigatoriedade de pagar despesas não previstas no orçamento. Esse é um problema grave. Interpretando de modo equivocado o princípio da tripartição dos Poderes, os Tribunais de Justiça acostumaram-se a criar suas próprias políticas salariais, o que levou muitos deles a ter uma média salarial quase três vezes superior à dos Executivos estaduais. Essas disparidades salariais acirraram os conflitos na administração pública e insuflaram greves, prejudicando quem depende de serviços essenciais. Para evitar abusos, emendas constitucionais aprovadas entre as décadas de 1990 e 2000 estabeleceram um teto salarial na administração pública e impuseram aos Três Poderes a obrigatoriedade de publicar, anualmente, os valores dos subsídios e da remuneração dos cargos e empregos públicos. Contudo, os tribunais abriram brechas para permitir que determinadas gratificações, adicionais e benefícios não fossem computados no cálculo dos vencimentos, para efeitos de teto. E também não trataram de forma transparente a obrigatoriedade de publicar anualmente os subsídios e remuneração de cargos, dificultando com isso a vigilância da sociedade. Ao pedir ao Supremo autorização para descontar do duodécimo do Tribunal de Justiça do Estado o pagamento de um discutível e extemporâneo aumento salarial de seus servidores, o governo do Amapá deu um passo importante para tentar acabar com esses abusos.