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Opinião|A governança das universidades

Reformas aprovadas na USP significam a adoção salutar de normas de responsabilidade fiscal

Atualização:

Universidades, como as que temos hoje, surgiram há cerca de 900 anos em Bolonha e em Paris e vêm desempenhando ao longo dos séculos um importante papel no desenvolvimento da ciência e da tecnologia. No campo das Humanidades, em especial, foram o berço onde se desenvolveram as grandes ideias que levaram à Revolução Francesa de 1789, à Revolução Comunista na Rússia em 1917, ao fim do colonialismo e à implantação da democracia em boa parte do mundo. Quando criadas, as universidades foram consideradas por alguns como centros para responder ao desejo de aprender e de saber, e não às demandas sociais do clero ou dos agentes econômicos, mas outros as viam como locais onde indivíduos eram treinados para atender às necessidades da classe dominante, no caso, a aristocracia.  A verdade provavelmente está no meio-termo entre estas duas concepções: as atividades da universidade atendiam às necessidades sociais da época, mas ao mesmo tempo contribuíam para mudar a estrutura da sociedade, enriquecendo-a e tornando-a mais complexa. Há muitas formas de avaliar a influência que universidades tiveram no destino das nações, mas basta citar o exemplo da Universidade Humboldt, criada na Alemanha em 1810, para convencer os mais céticos de que, além de produzir especialistas que desempenham papel fundamental no sistema produtivo e na governança, as universidades foram o caldeirão das novas ideias que resultaram no que consideramos hoje a civilização ocidental. Por ela passaram Schopenhauer, Hertz, Koch, Weber, Einstein, os irmãos Grimm, Hegel, Marx, Engels, Heisenberg e tantos outros expoentes da ciência e da cultura dos séculos 19 e 20. No século 20, a intervenção de governos totalitários nas universidades para torná-las instrumentos da propagação das ideologias foi desastrosa, tanto na Rússia, após a revolução comunista, quanto mais tarde na Alemanha com o nazismo. Quando os comunistas assumiram o poder, em 1917, aboliram os exames de ingresso para que o proletariado tivesse acesso a elas. Ampliaram também o número de universidades de 73 em 1914 (antes da revolução) para 278 em 1921. Essa política fracassou, o que levou Lenin em 1921 a reintroduzir critérios de seleção de estudantes e orientar as universidades a prepararem profissionais para gerir as atividades econômicas do país. Na Alemanha, com a ascensão de Hitler, a expulsão das universidades dos antinazistas por motivos políticos e dos judeus por motivos raciais fez com que ela perdesse a corrida para desenvolver armas nucleares. As grandes universidades atuais correspondem a uma visão republicana e liberal de seu papel social, que é o resultado da evolução do modelo de Humboldt. Segundo essa visão, as funções da universidade são: propiciar a busca livre da ciência e da excelência em todas as áreas; realizar suas funções sem se submeter a interesses de classes, grupos partidários ou a ideologias totalitárias; garantir o acesso sem utilizar outro critério que não seja a capacidade dos candidatos. A Universidade de São Paulo (USP) e outras no Brasil foram concebidas dentro dessa visão, consagrada na Constituição de 1988, que no seu artigo 207 garantiu às universidades quase todas as características de uma universidade liberal: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. A Constituição deu autonomia de gestão às universidades. Mas autonomia de gestão é uma coisa e garantir recursos financeiros é outra. A autonomia de gestão não é soberania e as universidades precisam negociar o nível dos recursos a ela alocados levando em conta outras necessidades da população, definidas pelos Poderes Executivo e Legislativo. No caso das universidades públicas do Estado de São Paulo, o Decreto n.º 29.598, de 2 de fevereiro de 1989, fixou a destinação de uma porcentagem do ICMS do Estado que era a média histórica dos repasses dos três anos anteriores. Esse porcentual foi atualizado ao longo dos anos. Do total de recursos, cerca da metade vai para a USP (hoje em torno de R$ 5 bilhões) e o restante, para as outras universidades públicas estaduais. Com isso as universidades receberam, pela primeira vez, um atestado de maioridade e puderam dispor livremente dos seus recursos, fixar os salários dos docentes e funcionários e definir suas prioridades de investimento. O decreto recomendava também que não mais de 75% da verba de cada uma delas fosse usada em despesas com pessoal, deixando uma fração de 25% para assegurar a manutenção de suas atividades de pesquisa e investimentos em equipamentos e construções. Esse sistema funcionou satisfatoriamente durante mais de 20 anos, até que mais recentemente a concessão de vantagens salariais e outras liberalidades elevaram as despesas com pessoal a mais de 100% do que as universidades recebem do Estado. É razoável que a universidade ofereça dormitórios e refeições subsidiadas aos estudantes carentes, como acontece em outros países, mas não diversas outras atividades que claramente não estão entre as atribuições da instituição universitária e apenas a oneram. As reformas propostas pelo reitor, Marco Antonio Zago, ao Conselho Universitário e aprovadas recentemente recolocam a USP no caminho correto. Sua implementação garantirá que a partir de 2022 a universidade não use mais do que 85% dos seus recursos originários dos impostos em despesas de pessoal, que é a regra seguida pelas melhores universidades do mundo. As reformas aprovadas significam, no fundo, a adoção salutar de normas de responsabilidade fiscal, como as que já existem em toda a administração pública, e vão garantir que a universidade concentre seus esforços nas atividades para as quais foi criada, que são o ensino, a pesquisa e a extensão. *Professor emérito e ex-reitor da USP