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A imposição das emendas

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Por Redação
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O Congresso às vezes aprova projetos de madrugada. Nada de errado nisso, em geral. Na Câmara como no Senado, as sessões deliberativas podem durar o que tiverem de durar. Mas as decisões sobre determinadas matérias, consumadas a altas horas, parecem pedir que delas se diga que foram tomadas na "calada da noite", tão flagrante a sua licenciosidade.O exemplo mais recente é o do texto base da proposta de emenda constitucional (PEC) aprovada na madrugada de terça-feira em primeiro turno pelo voto de 384 deputados, contra apenas 6. A emenda institui o impropriamente chamado orçamento impositivo. A impropriedade - ou melhor, o truque semântico - consiste em que o Executivo continuará desobrigado de gastar o que tiver sido autorizado pelos legisladores para essa ou aquela finalidade. Menos em um caso.O governo será obrigado a liberar as verbas para as emendas parlamentares individuais no valor equivalente a 1,2% da receita líquida do exercício anterior. Ou, em valores atuais, R$ 8,7 bilhões. A PEC já passou no Senado em 2013. À época, ao se dar conta de que a festança seria inevitável, o Planalto conseguiu ao menos fechar um acordo pelo qual metade das emendas se destinará à saúde. Além disso, os respectivos recursos entrariam na conta dos desembolsos da União na área, sujeitos a um piso constitucional - o que a oposição considera "fazer cortesia com o chapéu alheio". Não está claro se a Câmara endossará o acerto a que se chegou no Senado. Pelas contas dos céticos, os R$ 4,35 bilhões que as emendas carreariam para a saúde (50% do total em dinheiro de hoje) seriam uma insignificância perto do que prevê o projeto de iniciativa popular sobre o financiamento público do setor. A decisão ficou para esta semana, quando serão apreciados os destaques do texto principal.De uma forma ou de outra, o pagamento compulsório das emendas é um acinte. De um lado, consagra a pulverização dos recursos, seja qual for a sua destinação, à margem ou mesmo na contramão dos programas governamentais de investimentos. De outro, consolida a condição de vereadores federais da maioria dos deputados: para as suas chances nas urnas, vale incomparavelmente mais a ponte que conseguirem construir em Cabrobó dos Anzóis do que o seu papel no debate dos assuntos de interesse nacional.O líder de bancada que outro dia pediu para ser fotografado ao pendurar no seu gabinete um retrato do ex-presidente Lula, numa deliberada descortesia à sucessora que não admite desistir da reeleição, tinha uma razão paroquial para a pirraça: nenhum dos seus mais de 30 liderados, alegaria ele depois em um momento de franqueza, tinha conseguido emplacar as suas emendas ao Orçamento deste ano eleitoral. Para eles e tantos outros mandatários, o resto é o resto.O sistema, de fato, é perverso. Tão rara como a presumível importância de qualquer delas para o País há de ser a liberação de verbas solicitadas pelos políticos a partir de uma avaliação objetiva dos benefícios, para as populações locais, das obras propostas. Uma das primeiras coisas que um deputado estreante aprende é que a verba fica ou sai do erário conforme os interesses circunstanciais do governante de turno. Votações se ganham abrindo o cofre. Retaliações ocorrem em caso contrário. É o império da barganha - no sentido mais ofensivo do termo aos princípios republicanos.Na esfera parlamentar, uma das medidas do prestígio de seus membros em posição de comando - na Mesa Diretora, na presidência de comissões decisivas como a de Constituição e Justiça ou na participação no Colégio de Líderes - está na promessa ou na prestação bem-sucedida de serviços à corporação, no varejo e no atacado. O atual presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, por exemplo, fez do "Orçamento impositivo" - que, repita-se, só é impositivo para as emendas - a sua bandeira eleitoral na Casa. Em fevereiro do ano passado, foi alçado ao cargo pelo voto de 270 colegas - mais do que a soma dos sufrágios recebidos por seus três concorrentes. Jogo jogado.