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A ''lei do barulho''

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Por Redação
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Há um bom tempo já que a Câmara Municipal de São Paulo vem dando seguidas mostras de que os paulistanos não devem esperar muito dela, nem em operosidade nem na qualidade do desempenho. Em outras palavras, trabalhar pouco e mal tem sido a regra geral do Legislativo municipal, em contraste com a prodigalidade nos gastos com salários e mordomias dos vereadores e sua pletora de assessores, sem falar nas verbas cada vez mais gordas para a divulgação de seu frustrante desempenho. Não é de surpreender, pois, que a maioria dos vereadores tenha, na prática, acabado com uma das grandes conquistas da cidade - as regras que garantiam a execução do Programa de Silêncio Urbano (Psiu) e possibilitavam aos paulistanos um mínimo de tranquilidade depois de sua dura e extenuante jornada de trabalho. A Câmara acaba de derrubar o veto do prefeito Gilberto Kassab àquela que já é chamada, com malícia e propriedade, de "lei do barulho", resultante de projeto do vereador Carlos Apolinário (DEM), que ironicamente é o líder do partido do prefeito. A nova lei torna inviável o Psiu, ao exigir que a fiscalização seja feita na casa do vizinho do local denunciado como barulhento, ao reduzir os valores das multas, ao ampliar os prazos para a interdição dos estabelecimentos faltosos e ao acabar com a denúncia anônima. Quanto ao local da fiscalização, argumenta Apolinário que, se o barulho for medido "dentro do local da reunião, nem festa de aniversário vai poder ter mais. Na Câmara, se você for medir, fecha a Câmara". O conjunto das mudanças deixa evidente que o argumento é falacioso e que o verdadeiro objetivo da nova lei não é preservar festinhas de aniversário que estariam ameaçadas por maníacos do silêncio, mas garantir a impunidade dos barulhentos. Se o problema fosse apenas o do local de medição do barulho, não haveria razão para reduzir substancialmente o valor das multas, que antes ficavam entre R$ 4 mil e R$ 17 mil e agora oscilam entre R$ 500 e R$ 8 mil.Não seria preciso também acabar com a denúncia anônima nem exigir, no momento da medição do barulho, a presença no local onde isso será feito do vizinho denunciante, do fiscal e do dono do estabelecimento contra o qual a queixa foi feita. A intenção é, com isso, constranger o denunciante e, assim, evitar que ele reclame seu direito ao silêncio. Finalmente, seria igualmente desnecessário estabelecer prazos pelos quais a interdição de um estabelecimento faltoso, que antes era feita em até três meses, agora não ocorrerá em menos de um ano.A verdade - que os argumentos ardilosos do vereador Apolinário não conseguem esconder - é que, por trás de todo esse bem-sucedido esforço para acabar com o Psiu, está a intenção de garantir a impunidade de templos evangélicos onde se abusa do barulho durante os cultos religiosos. Há muito tempo o vereador vinha tentando evitar que o Psiu interferisse nos templos. Conseguiu até aprovar uma lei que criava regras diferentes para todos os templos - restringi-las aos evangélicos seria demais - no que se refere ao barulho. Como essa lei foi derrubada na Justiça, Apolinário voltou à carga com a lei que agora entrará em vigor, que estendeu o privilégio a todos os locais de reunião. Deixou felizes tanto aqueles evangélicos que abusam do barulho como os donos de casas noturnas.Infelizes ficaram aqueles paulistanos, que desde 2007 passaram a ter bons motivos para alimentar a esperança de acabar com os abusos dos barulhentos. Em 2006, o Psiu multou 74 estabelecimentos por excesso de barulho e outros 127 foram punidos por não terem autorização para funcionar de madrugada. No ano seguinte, aqueles números saltaram, respectivamente, para 221 e 412. O apoio da população, que se refletiu no aumento das denúncias contra os barulhentos, e o rigor da fiscalização fizeram com que São Paulo, que chegou a ser a segunda cidade mais barulhenta do mundo, ocupasse em 2008 o oitavo lugar, uma melhora considerável. É todo esse esforço bem-sucedido para garantir o merecido sossego dos paulistanos que a Câmara pôs a perder, irresponsavelmente.