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A lógica ditatorial de Putin

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Por Redação
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Do presidente russo, Vladimir Putin, pode-se dizer o que se queira - menos que ele é incoerente. O ex-agente da KGB, que na virada do século escalou as muralhas do Kremlin, onde pretende permanecer pelo menos até a próxima década, a um ou outro título, reprime com brutalidade os que protestam contra os seus métodos para se perpetuar no poder e apoia ativamente o autocrata aliado que conduz uma verdadeira campanha de extermínio em seu país, o ditador sírio Bashar Assad. Os dois, aliás, herdaram os respectivos governos - Putin, do antecessor Boris Yeltsin que o apadrinhou; Bashar, diretamente do pai, o tirano Hafez - no mesmo ano de 2000. Já o histórico das demandas por mudanças políticas em ambos os países e, sobretudo, a escala da repressão em cada caso diferem amplamente. Na Síria, a contar das demonstrações iniciais pela libertação de presos políticos, a insurgência contra o regime está completando 15 meses. Nesse período, os massacres ordenados por Damasco, sob o comando de Maher Assad, irmão do ditador, deixaram mais de 10 mil mortos, muitos deles vítimas de atrocidades perpetradas pelas milícias shabiha ("fantasma"). Bem ou mal, a oposição se organizou, criou uma força armada, o Exército Livre da Síria, e assumiu o controle de porções do território. Na terça-feira, pela primeira vez, uma autoridade da ONU, o subsecretário para Operações de Paz, Hervé Ladsous, reconheceu o óbvio: o país está em guerra civil.Na Rússia, o descontentamento começou há oito meses, quando o então primeiro-ministro Putin confirmou que se candidataria pela terceira vez à presidência em 2012, deixando escancarado o arranjo oligárquico pelo qual o seu afilhado político Dmitri Medvedev, à época presidente, iria para o seu lugar na chefia do Gabinete. Mas o que desencadeou a maior onda de protestos da Rússia pós-comunista foi a maciça fraude orquestrada pelo Kremlin para favorecer o partido governista Rússia Unida, nas eleições parlamentares de dezembro passado. Em grau menor, as trapaças se repetiram no pleito presidencial de março: o objetivo era garantir que a vitória certa de Putin se desse já no primeiro turno - e, de fato, ele foi declarado eleito com 62% dos votos. A essa altura, de todo modo, o gênio tinha escapado da garrafa: passeatas desafiadoras, reunindo milhares de pessoas, passaram a fazer parte da paisagem das metrópoles russas.O que não mudou foi a política russa de apoio à ditadura do seu de há muito Estado-cliente no Oriente Médio. Em dupla com a China, também detentora do poder de veto no Conselho de Segurança, a Rússia deixou claro que tornaria fútil qualquer tentativa ocidental de aprovar no colegiado sanções que pudessem afetar o poder do clã Assad. O máximo que Moscou e Pequim aceitaram foi endossar a proposta da Liga Árabe de um plano de cessar-fogo na Síria, sob a mediação do ex-secretário-geral da ONU Kofi Anan. O plano não valeu, como se diz, o papel em que foi impresso - e não há nenhuma perspectiva realista de sustar a violência no país. Só que a Rússia "cruzou uma linha", disse a secretária de Estado americana Hillary Clinton, ao acusar o Kremlin de vender a Damasco helicópteros para atacar a insurgência.Além de denunciar a violação do plano da ONU para a crise, que previa a suspensão do fornecimento de armas às partes em confronto, Hillary contestou a versão russa de que os helicópteros seriam usados apenas para fins defensivos. A acusação coincidiu com o recrudescimento dos protestos contra Putin. Estima-se que até 100 mil pessoas tenham voltado na terça-feira às ruas de Moscou e São Petersburgo. Foi o primeiro ato público de vulto desde as manifestações violentamente reprimidas que fizeram um contraponto sem precedentes na história russa à posse de Putin, em 7 de maio. As passeatas por novas eleições foram precedidas de um rol de arbitrariedades e da imposição de pesadas multas aos participantes de demonstrações não autorizadas. Mas os russos estão perdendo o medo atávico de seus amos.