O orçamento público é, por definição, o resultado da combinação de previsões. Previsões sobre os recursos com que os governos contam para exercer suas responsabilidades e sobre os compromissos a serem atendidos para esse fim. Previsões são sujeitas a incertezas, algumas menos, outras mais. Ademais das incertezas, é preciso considerar se elas se referem a fatos que ocorrem com regularidade e, portanto, demandam previsibilidade, ou não. Quanto maior for o rigor aplicado à realização dessas previsões e mais transparente for o método adotado para isso, melhor será o resultado.
Tanto a previsibilidade quanto a transparência demandam rigor na aplicação dos conceitos utilizados para classificar as despesas e as receitas públicas, o que não se verifica no Brasil hoje em dia, pois a nova linguagem orçamentária, que adota critérios não convencionais para identificar as distintas espécies de gastos e as respectivas fontes de financiamento, não permite que a sociedade compreenda com clareza o que está em jogo no debate sobre os problemas que o País enfrenta para corrigir os desequilíbrios das contas públicas.
Tomemos, por exemplo, o caso das receitas. Há duas espécies principais de receitas. As que resultam do exercício constitucional do poder do Estado para cobrar tributos das empresas e dos seus cidadãos, as chamadas receitas ordinárias, no jargão orçamentário. E as receitas extraordinárias, que são obtidas por meio da venda de ativos (privatizações), de direitos de exploração de serviços (concessões), de dividendos de empresas estatais e renegociação de dívidas, por exemplo.
As ordinárias são regulares e recorrentes, embora estejam sujeitas a incertezas decorrentes de flutuações na conjuntura econômica. As extraordinárias são irregulares, episódicas e finitas, além de sujeitas a maiores incertezas. Portanto, receitas extraordinárias não devem ser usadas para atender a compromissos regulares e recorrentes, sob pena de provocar desequilíbrios, afetar as prioridades e comprometer a credibilidade. Mas no Brasil essa regra já não é observada, pois as receitas ordinárias não são mais suficientes para sustentar as despesas correntes.
Do lado das despesas, também é preciso atentar para as diferenças com respeito ao caráter de cada uma delas. Grande parte refere-se a despesas regulares e contínuas, outras são despesas que requerem continuidade, mas não regularidade, como é o caso dos investimentos. Despesas imprevistas são raras e geralmente resultam da ocorrência de calamidades públicas e de conflitos armados, internos ou externos.
O que diferencia os dois grupos não é o grau de incerteza das previsões sobre as necessidades de gasto e tampouco o seu caráter. A diferença resulta do fato de algumas serem protegidas por leis e outras, não. As primeiras passam a ser conhecidas como despesas obrigatórias e as demais por despesas discricionárias. Disso resulta a leitura de que o obrigatório é prioritário e o discricionário, não. Obrigatório é o que está amparado em leis. Prioritário é o que o País necessita para prover o desenvolvimento e garantir o atendimento das demandas da população. Discricionário não é sinônimo de dispensável ou de irrelevante e obrigatório não significa que seja indispensável, ou essencial. A diferença entre eles é apenas a existência de uma norma (constitucional ou legal) que estabelece a discriminação.
Um exemplo apenas serve para ilustrar a diferença. Há consenso entre os especialistas na área de que investimentos em saneamento básico são fundamentais para a saúde da população. São prioritários e essenciais, mas não obrigatórios e, portanto, foram expulsos do orçamento e respondem por boa parte do ressurgimento de doenças que já haviam sido erradicadas e do surto atual de doenças transmitidas pelos mosquitos.
Previsões de receitas e despesas com características distintas não devem ser misturadas, pois a mistura destrói a essência do orçamento. Se os fatos são regulares e recorrentes, é necessário que os compromissos que têm essas características contem com recursos de igual natureza. De outra parte, despesas que não são regulares, mas geram compromissos regulares no futuro, precisam ter em conta esse fato para preservar o equilíbrio do orçamento.
Tanto as obrigatórias quanto as discricionárias se dividem ainda em investimentos e custeio. Costuma-se, equivocadamente, associar investimentos a uma despesa de boa qualidade e o custeio a algo que seria menos importante. Mas essa visão simplista do problema também não corresponde à realidade.
Em boa parte dos programas sociais o custeio é tão ou mais importante que o investimento, porque prédios escolares ou instalações hospitalares modernas não geram bons resultados se não contarem com recursos suficientes para custear a provisão dos serviços.
Ao longo dos muitos anos em que sua importância foi ignorada, a essência do orçamento deixou de ser apreciada. Perdeu o equilíbrio, a consistência e a estabilidade. O momento parece oferecer uma boa oportunidade para iniciar sua restauração.
Um passo inicial nessa direção trata de apreciar a proposta orçamentária de um ângulo diverso daquele que focaliza a distinção entre o obrigatório e o discricionário. Por essa óptica se conclui que é praticamente inexistente o espaço para promover o ajuste fiscal via corte de despesas, sendo necessário, portanto, aumentar os impostos. A novilíngua orçamentária interdita um debate sobre o real espaço disponível para promover o ajuste fiscal via corte de gastos. Urge retomar a linguagem correta para promover a transparência e vislumbrar caminhos para restaurar a essência do orçamento.
*Fernando Rezende é economista, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de empresas da FGV e foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada