Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A ocupação é só um começo

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Por Redação
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Em meados dos anos 1970, quando o general Ernesto Geisel acenou com a distensão "lenta, gradual e segura", um governador de Estado do partido do governo, a Arena, avaliou a perspectiva com uma frase que ecoava Guimarães Rosa: "Estamos muito no começo de tudo." Ele tinha razão: um decênio ainda se passaria até a redemocratização do País. O comentário vem a calhar agora, quando se têm em conta os enormes desafios a serem superados para que se eliminem efetivamente as condições que permitiram ao narcotráfico apossar-se de áreas inteiras do Rio de Janeiro. "No começo de tudo", a bem-sucedida ofensiva que, entre a quinta-feira e o domingo, desalojou centenas de traficantes dos seus redutos na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, na zona norte da cidade, foi uma amostra exemplar de determinação e união no combate ao crime. A ação coordenada das Polícias Civil e Militar fluminenses com a Polícia Federal, a Marinha e em seguida o Exército mudou a relação de forças entre o Estado e a traficância. Nesse sentido, houve de fato uma virada de página sem precedentes no Rio. Os chefes que mandaram as suas gangues aterrorizar a população carioca, em represália à nova política de pacificação das favelas, claramente não imaginavam que o governo responderia como respondeu, levando a repressão aos seus santuários - e não mais sob a forma de expedições punitivas que se esgotam em si mesmas. As autoridades, de seu lado, tampouco esperavam tomar a Vila Cruzeiro e, menos ainda, o Complexo do Alemão a um custo humano mínimo. Nesse último local, uma aglomeração de 25 favelas e 30 mil domicílios, habitados por 400 mil pessoas, viviam hordas de traficantes com armas, munições e veículos à farta. Pois os 2.700 policiais que subiram o morro na manhã de domingo, apoiados por 15 blindados e helicópteros, levaram apenas hora e meia para se impor ao inimigo desarvorado. Dois traficantes morreram, 20 foram presos. Entre eles, um dos assassinos do jornalista Tim Lopes, foragido desde 2008, e uma chefona que deixou o Complexo do Borel, quando a região foi dominada por uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).Símbolo da reconquista do Alemão foi o tríplex abandonado às pressas na ironicamente chamada Rua Gente Boa, onde morava um dos principais traficantes do Complexo, o Pezão. Num lance de relações públicas, a polícia abriu a casa com piscina e ar-condicionado ao povo da esquálida vizinhança. Não só os favelados, mas a população carioca e os brasileiros em geral aplaudiram a ocupação da área que o secretário de Segurança José Mariano Beltrame - hoje uma figura nacional - equiparou ao "coração do mal", por abrigar o mais virulento dos bandos da droga, o Comando Vermelho."Se se chegou ao Alemão, vamos chegar à Rocinha, ao Vidigal e assim por diante", afirmou Beltrame, referindo-se aos baluartes do narcotráfico na zona sul do Rio. Mas, para os moradores dos morros libertados, o que interessa não é para onde irão as tropas, mas por quanto tempo elas ficarão ali. O retrospecto não é tranquilizador. O Complexo já foi ocupado em 2007, numa operação que mobilizou mais de 1.300 policiais e deixou 19 mortos. Quando as tropas se retiraram, a bandidagem voltou. O mesmo aconteceu, no ano seguinte, na Vila Cruzeiro.As autoridades se apressam a garantir que desta vez as populações não ficarão novamente à mercê da marginália. Mas as contas não fecham. À medida que mais favelas forem resgatadas, maior será evidentemente a demanda por forças permanentes e treinadas não só para reprimir, mas para atuar nos moldes das UPPs, da PM. As UPPs, aliás, são apenas 12 por enquanto - uma gota em um oceano de necessidades que vai da segurança aos serviços básicos.Isso sem falar em outro mal a extirpar dos morros - as milícias que substituem os traficantes na extorsão de seus habitantes. E, sobrepondo-se a tudo, há o imperativo de prosseguir na reforma da polícia. Não fossem os laços entre policiais e malfeitores, "o tráfico não teria alcançado o patamar atual", afirma o ex-secretário nacional de Segurança Luiz Eduardo Soares. Para ele, o que se convencionou chamar de banda podre da corporação é "uma orquestra".