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Opinião|A política do fingimento

Atualização:

O romano Tácito ressurgiu na modernidade como patrono do segredo, técnica essencial em toda razão de Estado. O “tacitismo político” vigorou no século 17 sob o signo de Maquiavel, teórico desvirtuado por governantes como Richelieu. Tácito revela a dissimulação principesca e as formas persuasivas hoje intituladas “ideologias”. Para conseguir obediência do populacho os dirigentes fingem acreditar nos valores por ele acarinhados. Uma frase de Tácito ilustra o controle social: “Fingebant simul credebantque”(Anais, V, 10) – os líderes ao mesmo tempo geram ficções e nelas parecem acreditar.

O enunciado explica a cultura política romana que alicerça a ordem jurídica e retórica sob a qual ainda vivemos. Nele são revelados os atos que levaram à abolição da República. Após a batalha de Actium (31 a.C.), ao vencer Marco Antônio, Otávio estabelece a paz interna e dobra os joelhos do Senado. Em 27 a.C. os senadores concedem-lhe o título de Augusto. Otávio é dito Princeps senatus e controla as importantes magistraturas militares, civis, religiosas. Ele instala prefeituras de abastecimento, segurança e vida civil. Daí, nomeia os magistrados superiores e os candidatos às eleições. Para obter adesão ao novo regime o líder usa a propaganda. Sob Otávio dito Pai da Pátria, o mês sextilis é rebatizado como Augustus e o quinctilis passa a ser Julius em honra de Júlio César. O império mistura fórmulas republicanas e monárquicas e nele restam como focos do poder o Senado, o povo e o príncipe (Yavetz, Zvi: La plèbe et le prince. Foule et politique sous le haut empire romain, 1984).

Para a eficácia da propaganda imperial urge que o líder pareça acreditar na sua própria divindade. Outra ficção é a soberania do povo, somada à fantasmagórica importância do Senado. Se as instituições não funcionam, resta a fantasia de que elas cumprem seu papel. A prerrogativa de colocar indivíduos em cargos elevados permanece hoje nas mãos imperiais de presidentes da República, sejam eles ditadores ou democratas. É preciso, pois, refletir sobre a escolha dos magistrados.

Aproveitemos a morte de um juiz da Suprema Corte dos EUA para pensar os valores, reais ou fictícios, que norteiam a seleção para o pretório. Antonin Scalia foi ali posto pelo Partido Republicano. Além dele vieram Anthony Kennedy e Clarence Thomas. Tais indicações inclinaram o plenário para a direita. Scaglia foi o primeiro ítalo-americano a chegar ao posto. A nomeação de Clarence Thomas, magistrado negro, surgiu de exigências políticas ligadas à cor. Com ajuda republicana Ruth Bader Guinsburg foi a segunda mulher na Corte. Só com tais exemplos vislumbramos que a ida ao tribunal tem vários motivos políticos, sociais, ideológicos. Diria Tácito: a Presidência finge acreditar em valores que transcendem o âmbito jurídico.

Em análise sobre a indicação de um “justice”, Richard Davis (Electing Justice: fixing the Supreme Court Nomination Process, 2005) mostra que a nomeação é cheia de rupturas. Além dos fins presidenciais e dos lobbies econômicos, políticos, étnicos, ideológicos, religiosos, existem outros filtros entre a Casa Branca e o Senado. A escolha não começa na indicação de um indivíduo, mas nos tribunais inferiores em âmbito federal, pois gabinetes ficam vazios após a ida de magistrados para o topo da máquina jurídica. O intervalo entre juízes comuns e a Suprema Corte ilumina o ambiente nas altas esferas jurídicas. É o que acontece com a morte de Scalia (Charlie Savage, Battle Over Bench Started Well Before Scalia’as Death, The New York Times, 16/2). Todo escolhido do tribunal é síntese de muitos coletivos empenhados em defender interesses maiores, ou menores, do país. O processo é violento, mas integra a ética democrática. A nomeação deixa de ser assunto privativo do presidente e dos senadores, pois acolhe amplos interesses opostos. O indicado passou pelo crivo de múltiplos estratos, na sociedade e no Estado. O segredo é enfraquecido, para infelicidade dos que seguem Tácito.

Se deixamos a República norte-americana e nos dirigimos ao Brasil, o panorama difere. Quando se substitui um juiz do STF, múltiplos interesses também entram em liça, mas fora da política visível. É o segredo segundo o tacitismo. Grupos de pressão defendem alvos contraditórios e tentam conduzir o processo. A Presidência da República e o Senado decidem o assunto no sigilo do gabinete e dos corredores congressuais. Tudo se faz como se interesses não existissem e não tivessem raízes sociais profundas. O nomeado, após sabatina em parte fingida, é visto como devedor de presidentes e parlamentares. Resultam suspeitas de alinhamento ao campo oficial. Como parte deles não exerceu a magistratura, inexistem alianças institucionais para substituir vagas nos escalões inferiores, a exemplo dos EUA. A nomeação é alheia ao que se passa em níveis menores. Não raro a distância se transforma em litígio, como nos embates de Joaquim Barbosa, presidente do STF, e titulares de Cortes federais de Justiça.

Muito se escreve sobre o modo de indicar magistrados para o STF. Propostas diversas acodem a juristas e políticos, segundo a conjuntura dos Poderes. Insuportável é a forma como decidem a Presidência da República e o Senado. Agem como se não devessem partilhar – ou fingir partilhar – valores republicanos, imaginam-se entes imperiais. Augusto indica, o Senado aplaude. Sem licença para gravar seu nome em ruas e prédios públicos, políticos buscam impor marcas nos magistrados que nomeiam. Se não mudam o calendário nem se proclamam divinos, decidem como se fossem numes que não precisam justificar seus atos. Os nomeados seguem atitude idêntica e julgam-se acima da plebe, que para eles é a massa ignara dos “leigos”. Todos mostram que a igualdade democrática não existe e nunca existiu entre nós. O imaginário imperial desgraça a vida brasileira, pois é quase impossível identificar, entre nós, uma República. Os Poderes insistem na prática enunciada por Tácito: “Fingebant simul credebantque”, ou, na ironia popular, “me engana que eu gosto”.

*Roberto Romano é professor da Unicamp