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Opinião|A política, os feitiços e os feiticeiros

Ainda há tempo para uma ação nacional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo

Atualização:

Qual o significado da campanha sem quartel para a derrubada do governo Temer vinda de círculos da direita em convergência com setores que reivindicam uma identidade à esquerda do espectro político? Certamente deve haver um. Mas qual? A esta altura parece claro que a via parlamentar não é propícia a esses propósitos, dado que o governo dispõe de folgada maioria nas duas Casas congressuais.

De outra parte, as ruas têm feito ouvidos moucos, ao menos até então, às incitações a manifestações de protesto contra o governo que lhes vêm dos meios de comunicação, em particular de sua rede mais poderosa e de ação mais capilar sobre a opinião pública, mantendo-se silenciosas. A intervenção militar, uma possibilidade teórica no quadro caótico que aí está, a quem serviria? Além de serem poucos os que a preconizam e de os militares não a desejarem, a experiência de 1964 deixou patente que as elites políticas que atuaram em favor de uma intervenção desse tipo foram logo decapitadas ou cooptadas pelo regime militar. Tais lições amargas não terão sido esquecidas, mesmo pelos que ora flertam com ela.

Então, o que é isso que temos pela frente? Dado que não é de todo plausível a hipótese de que a sociedade tenha ensandecido, como se faz demonstrar na vida cotidiana dos brasileiros que tocam sua vida no trabalho e nos estudos, em sua imensa maioria à margem de uma cena política que avaliam estar fora do seu raio de influência, o charivari nacional que nos atordoa tem sua fonte original na própria política e em suas instituições e atende pelo nome de sucessão presidencial.

Faz parte da nossa tradição republicana que as sucessões presidenciais, incluídas as que tiveram seu curso no regime militar, importem em crise, variando com as circunstâncias uma maior ou menor mobilização social suscitada por elas. Foi assim na sucessão de 1930, que pôs a nu, mais do que uma crise conjuntural, uma crise orgânica da ordem burguesa – para usar as categorias de Gramsci, um fino estudioso das crises políticas –, manifesta nas rebeliões tenentistas dos anos 20 e culminando com a Revolução de 1930, que importou a ultrapassagem do sistema agrário-exportador pelo urbano-industrial.

Igualmente na de 1955 – esta, de fato, apenas uma crise conjuntural –, assim como nas vésperas da sucessão de 1965, que prometia levar à vitória uma coalizão de centro-esquerda portadora de um programa de governo nacional popular, cujo desenlace dramático se efetivou no golpe de 1964 – outra crise de natureza orgânica. O regime militar que então se instalou veio a cumprir um programa de plena imposição do capitalismo no País, atraindo para a sua órbita o mundo agrário com políticas públicas que vieram a favorecer a emergência do agronegócio em regiões de conflitos por terra no hinterland. Fechavam-se, assim, as possibilidades, então presentes, para uma reiteração dos casos clássicos das revoluções no Terceiro Mundo que contaram com a presença decisiva do campesinato e dos trabalhadores do campo.

Nesta sucessão de 2018 não há fumaças no ar de crises orgânicas, além de estarem caindo no vazio as ordens de comando que nos chegam sem parar dos meios de comunicação que reclamam a imediata derrubada por fas ou nefas do governo constitucional. No caso, aliás, chama a atenção o fato esquisito de que a agenda da direita dita moderna, que tem sua ponta de lança em empresas de comunicação, guarda similitudes em vários aspectos com a governamental. Ademais, como notório, os atuais quadros dirigentes da economia têm sua origem no que se designa como o mercado e contam com sua confiança.

A referência ao texto de Marx sobre o 18 Brumário é batida, mas necessária, até por sua comicidade. Na França da Segunda República, duas dinastias, a dos Bourbons e a de Orleans, porfiavam em favor do retorno ao regime monárquico, mas como somente uma delas poderia beneficiar-se dessa troca de regime, acabaram tendo de se comportar como fiadoras da República de 1848 – que ambas odiavam –, enquanto uma delas não lograsse impor-se à facção rival. Desse imbróglio, como se sabe, não resultou nem República nem monarquia, mas a ordem imperial de Luís Bonaparte.

Aqui, nesta miserável conjuntura em que se vive, também os extremos que se repelem reciprocamente – a direita moderna e o PT e seus satélites – se veem compelidos a ações convergentes a fim de que na liça da sucessão, defenestrado o governo Temer, um quadro do PMDB de históricas relações com a nossa tradição republicana, só reste caminho para eles.

Contudo, como paira sobre a cabeça de um deles a ameaça real de o Judiciário tornar inviável sua candidatura, a direita dita moderna descortinaria à sua frente uma larga via aberta para seu velho projeto de se assenhorear plenamente do Estado, a fim de redesenhar a seu serviço as relações entre ele e a sociedade. Restaria o problema difícil, talvez insolúvel, de encontrar um candidato com o perfil adequado para a missão.

Mas há método nesta loucura em que estamos imersos, não estamos inteiramente à deriva sob o domínio dos fatos, pois há quem tenha a pretensão de dirigi-los. Todavia a arrogância do ator de querer submeter o destino a seus desígnios pode – como entre os gregos, que a denominavam húbris – ser considerada como um desafio aos deuses passível de punição, destinando a um outro, que se mantém em serena prudência em meio ao tumulto dessas paixões desvairadas, mesmo que não o queira, o objeto de suas ambições.

Ainda há tempo para uma ação política racional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo, sacrificando nossa incipiente democracia, que tanto nos custou, às ambições dos que perderam o fio terra com o mundo real e se entregaram às artes da feitiçaria política, esquecidos de que feitiços podem virar-se contra os feiticeiros.

* LUIZ WERNECK VIANNA É SOCIÓLOGO, PUC-RIO