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Por Rubens Barbosa
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Poucos no governo, e mesmo no setor privado, parecem estar atentos às profundas mudanças que estão ocorrendo no comércio internacional e às suas consequências sobre o setor externo brasileiro. Com a eleição, agora, de um brasileiro para o comando da Organização Mundial do Comércio (OMC), talvez surja maior interesse nas implicações desse novo cenário sobre a economia brasileira, em especial sobre nossa política industrial e de comércio exterior. Em termos geoeconômicos, está ocorrendo a transferência do eixo econômico e comercial do Atlântico para o Pacífico, com a emergência da China como o maior importador e exportador global. Nos próximos anos, por causa da produção de empresas estatais chinesas, sobretudo na África, a China será uma exportadora líquida de produtos agrícolas e de minérios. As transformações no processo de globalização estão sendo aceleradas pela tendência de concentração da produção de manufaturas em poucos países. Em futuro não distante haverá apenas um reduzido número de países com grande produção industrial: EUA, Alemanha, Japão e China. Enquanto ocorre essa forte concentração, a fragmentação da produção de bens industriais em diversos países fez surgir o comércio das cadeias produtivas, iniciado pelas empresas multinacionais. Algumas consequências dessa tendência podem ser identificadas: A dinâmica do comércio das cadeias produtivas globais leva à exclusão de países e à fragmentação da produção, com consequência negativa sobre o comércio de manufaturas; a capacidade de cada país de vender passa a depender da capacidade de compra do resto do mundo, como mostra a Embraer; fora do circuito das cadeias produtivas globais, a maioria dos países em desenvolvimento está concentrando suas exportações em commodities. A lógica do comércio tradicional é diferente da do comércio de cadeias produtivas. Enquanto no primeiro a produção interna é vendida a outro país e as barreiras existem nas fronteiras (tarifas e restrições não tarifárias), no segundo os países produzem para as cadeias produtivas, no marco dos novos acordos comerciais com regras próprias que regulam políticas internas de investimento, de propriedade intelectual e de compras governamentais. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a OMC estão propondo que as estatísticas do comércio internacional sejam computadas pelo comércio de valor agregado. Em outras palavras, os números do intercâmbio comercial deveriam medir a contribuição industrial e de serviços que cada país agrega ao produto industrial final. Estamos assistindo a uma proliferação de mega-acordos regionais e bilaterais de comércio. Nos últimos anos, dos 543 acordos de livre-comércio em negociação, 354 entraram em vigor. Dois mega-acordos estão em marcha: a Parceria Trans-Pacífico, na Ásia, e a Parceria Transatlântica, entre EUA e Europa, envolvendo um terço do comércio mundial. Japão e China mudaram sua política e passaram a negociar acordos bilaterais. Na América do Sul, países como Chile, Colômbia e Peru assinaram acordos comerciais com EUA e Europa e estão negociando acordos na Ásia. Esses acordo estão criando diferentes normas sobre investimento, compras governamentais, serviços, regra de origem, competição, salvaguardas, propriedade intelectual e sanitárias à margem das discussões multilaterais da OMC, com profundas consequências para os países em desenvolvimento. Enquanto a OMC procura regular e facilitar o intercâmbio tradicional, novas regras do comércio das cadeias produtivas começam a ser definidas de forma ad hoc nos acordos regionais, tratados bilaterais de investimento e por reformas unilaterais dos países em desenvolvimento. Esse fato está ocasionando a perda de importância da OMC, que, paralisada nas funções de negociação multilaterais, assiste a essa multiplicação de regras que vão além das hoje existentes na Organização. A revolução energética nos EUA, em consequência do aproveitamento do folhelho (gás de xisto), está acelerando o processo de reindustrialização. Esse fato deverá acarretar profundas modificações no mercado de óleo e gás e de manufaturas no mundo inteiro. A renovada agressividade comercial dos EUA vai propiciar a abertura de mercados para os produtos americanos e aumentar a pressão para que os países adiram às novas normas. Isso foi bem exemplificado por recentes propostas do National Foreign Trade Council (NFTC) ao Congresso, em Washington, no curso das discussões para renovação da Trade Promotion Authority (TPA). Propõe o NFTC, entre outras medidas, que sejam fortalecidas as regras internacionais contrárias a leis e procedimentos que condicionam o acesso ao mercado nacional a investimento local, aquisição de suprimentos locais ou transferência de tecnologia. Nunca a influência de fatores alheios ao comércio esteve tão presente nas negociações comerciais. Considerações de natureza geopolítica estão se sobrepondo a diferenças internas para permitir a prevalência de interesses concretos, como no caso do acordo EUA-UE e no da Ásia. Esses acordos claramente visam à contenção da China e ao estabelecimento de regras e padrões (standards) que os demais países deverão seguir se quiserem exportar para aqueles mercados. Finalmente, a desvalorização competitiva das moedas, com a manipulação das taxas de câmbio, permite ganhos comerciais e, no caso de muitos países, anula a proteção legítima representada por tarifas estabelecidas pela OMC. O Brasil, sem estratégia de negociação comercial e com dificuldades para criar um mercado regional para seus produtos, integrando os demais países num intercâmbio de cadeia produtiva, a exemplo do que ocorre na Ásia e na Europa, está cada vez mais isolado. E se persistir a política de ignorar o que ocorre no mundo, dificilmente poderá associar-se às novas tendências do comércio internacional.

* Rubens Barbosa é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp.