Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A repactuação das dívidas dos Estados e municípios

Exclusivo para assinantes
Por Cid Heraclito de Queiroz, ex-procurador-geral da Fazenda Nacional e deu forma jurídica ao Projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal
3 min de leitura

Na arguta observação de Alexis de Tocqueville, "povos existem que amam a ostentação, o alarido e a alegria e que não lamentam gastar um milhão em fumaça". No Brasil, bilhões e bilhões têm sido gastos em fumaça, à conta do bolso dos contribuintes, que não suportam mais uma carga tributária extorsiva e confiscatória - 36% do produto interno bruto (PIB) -, como na Inglaterra dos tempos do rei João Sem Terra, cujos excessos levaram os barões ingleses a impor-lhe a Magna Carta.A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) - Lei Complementar n.º 101, de 4/5/2000 - constitui um marco histórico nas finanças públicas do País, cujo objetivo nuclear é o de opor limites aos gastos e ao endividamento públicos, fazendo cessar a gastança desenfreada. A LRF ditou não só o saneamento financeiro da União, dos Estados e dos municípios, mas também a manutenção do equilíbrio das contas do Tesouro público, indispensável ao crescimento econômico e ao bem-estar social. Responsabilidade fiscal significa a gestão financeira e patrimonial das entidades públicas, nos três níveis de governo e nos três Poderes, com observância dos preceitos legais que previnem o déficit nas contas públicas, contêm o processo de endividamento e vedam a assunção de obrigações e encargos sem a correspondente fonte de receita ou redução da despesa.Antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal e com base em preceitos legais amplamente negociados, a União assumiu as dívidas decorrentes de empréstimos e financiamentos contraídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, obrigando-se, consequentemente, perante os credores originários. Ao mesmo tempo, refinanciou tais obrigações em 30 anos, com atualização monetária pela variação do Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) ou por outro índice que vier a substituí-lo, naturalmente mediante acordo entre as partes, e juros a taxas preestabelecidas (6% a 9%). Ocorreu, desse modo, ampla novação, ou seja, objetiva (nova dívida), subjetiva passiva (substituição do devedor) e subjetiva ativa (substituição do credor). Todavia, nos instrumentos contratuais, foram acrescentadas duas condições não previstas na lei: 1) A substituição do IGP-DI somente poderia ocorrer no caso de extinção desse índice; e 2) a dívida não seria monetariamente corrigida na hipótese de variação negativa do IGP-DI. Em sucinto estudo para o então prefeito de São Paulo José Serra, sustentamos que os Estados e municípios tinham o direito à rerratificação dos contratos para correção desses dois pontos.Entretanto, nada foi feito. Com o decorrer do tempo e o habitual insucesso das previsões econômicas, a taxa de juros contratada também se revelou exagerada. Na realidade, o refinanciamento concedido pela União aos Estados e municípios, como uma ajuda indispensável para o saneamento financeiro dessas unidades federativas, tornou-se uma excelente fonte de renda para a União e uma verdadeira extorsão para os destinatários do "favor" federal. Segundo o governador mineiro, Antonio Anastasia, "Minas Gerais já pagou, em valores nominais, uma vez e meia sua dívida com a União. E devemos cinco vezes o que devíamos originalmente". Isso lembra a situação dos antigos mutuários do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), cuja dívida aumentava mês a mês, apesar do pagamento pontual das prestações mensais, até que o governo resolveu assumir parte das obrigações.Para resolver a tormentosa situação dos Estados e municípios, no entanto, o governo aproveitou a oportunidade para disparar um "míssil" contra uma das regras básicas da LRF, ou seja, o artigo 14, segundo o qual "a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita" deve "estar acompanhada" de compensação "por meio de aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição". O governo pretenderia alterar essa regra fundamental - plenamente respeitada pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva -, para tornar viável a concessão de novos benefícios fiscais, sem o correspondente aumento de tributos ou contribuições. Seria o início do fim da LRF! E para solucionar a questão da atualização e dos juros das dívidas dos Estados e municípios o governo pretenderia alterar a redação do parágrafo 2.º do artigo 35 da LRF, mas para estabelecer que os juros e a atualização monetária das operações, ao longo do prazo contratual, não ultrapassem a variação da taxa Selic, que é "divulgada" livremente pelo Banco Central, ou seja, por uma autarquia da parte credora (União Federal). Ora, isso é o que se denomina, em Direito, cláusula puramente potestativa, isto é, quando a condição depende apenas do arbítrio de uma das partes, o que é expressamente vedado pelo artigo122, in fine, do Código Civil.A solução adequada para a questão foi, afinal, consubstanciada no Projeto de Lei Complementar n.º 86, de 2012, do ilustre senador Francisco Dornelles, que altera o parágrafo 2.º do artigo 35 da LRF, para admitir "a repactuação, nos termos da lei, das operações de crédito entre a União e o Estado ou o Distrito Federal ou Município, contraída antes da data de publicação" da LRF, "desde que não importe no aumento do saldo devedor existente na data de assinatura do respectivo instrumento contratual". A atualização monetária será recalculada, retroativamente à data do contrato inicial, pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Essa proposta conta com o apoio dos 27 secretários estaduais de Fazenda, reunidos no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), e enseja a repactuação das obrigações assumidas pelos Estados e municípios em condições justas e éticas.