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A vida ou a morte

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Por Miguel Reale Júnior
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O outono/inverno de 2014 evoca lembranças doloridas. Completa-se um século do início da Primeira Guerra Mundial e também um século do início da perseguição aos armênios. Perfaz-se 20 anos do genocídio dos tutsis em Ruanda. Há 50 anos, impunha-se o regime militar no Brasil, que perdurou por 21 anos cometendo atrocidades com morte por tortura, especialmente a partir do Ato Institucional n.º 5.Cada um desses acontecimentos sempre teve um fato determinado a detonar o início da violência.A guerra de 1914 matou cerca de 10 milhões de pessoas, submetendo os combatentes a batalhas de longa duração, repletas de sacrifícios, revestidas de agressividade inaudita, a ponto de não haver trégua sequer para buscar feridos caídos. Depois dos tempos felizes da Belle Époque, o confronto foi declarado tendo por estopim o atentado à vida do arquiduque Francisco Ferdinando, da Áustria. As festividades nas capitais Berlim, Viena e Paris, na expectativa de uma luta rápida com vitória próxima, contrastaram com a barbárie instalada na Europa por longos quatro anos de destruição. Parcela considerável da população dos países europeus submeteu-se a condições horríveis nas trincheiras para matar um desconhecido ou ser morta por outro, sem razões maiores para o morticínio. Consistente literatura demonstra a evitabilidade do confronto.Os armênios, acusados pelos turcos de colaborarem com a Rússia na guerra recém-declarada no segundo semestre de 1914, foram mortos organizadamente pelos Jovens Turcos, principalmente em abril do ano seguinte, resultando na perda de cerca de 1,5 milhão de pessoas.Em Ruanda, a perseguição dos tutsis pelos hutus constava do cotidiano desde declarada a independência, vistos os tutsis como invasores europeizados ante a população original formada pelos hutus. Foi, porém, o atentado que matou o presidente Habyarimana, cujo avião foi derrubado em 6 de abril de 1994, que desencadeou o massacre. Em poucos dias, 2/3 da população tutsi foi morta pelas forças policiais e por membros da comunidade hutu, atingindo indiferentemente mulheres, crianças e velhos, ao lado de homens adultos, contando com a indiferença inicial da ONU e de países como a França.No Brasil, o deputado Márcio Moreira Alves, em 3 de setembro de 1968, fez discurso incitando as moças a não saírem com oficiais das Forças Armadas, em vista de a Universidade de Brasília haver sido invadida por militares. A Câmara dos Deputados negou autorização para processá-lo. No dia seguinte, baixou-se o Ato Institucional n.º 5, começando a fase de maior repressão política e policial, que culminou com a tortura e a morte de opositores na exata postura do coronel Paulo Malhães, que à Comissão da Verdade afirmou ter matado "tantos quanto foi necessário".Se nos acontecimentos acima existiram fatos desencadeadores da violência, verifica-se, todavia, que estes foram de menor relevo, a demonstrar constituírem apenas desculpas justificadoras e impulsionadoras de uma agressividade latente. Em suma, com ou sem o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, aliás pouco quisto na Áustria, a Primeira Guerra teria sido declarada. Os genocídios dos armênios ou dos tutsis sucederiam sem os antecedentes imediatos relatados. Igualmente no Brasil, sob a arrogância da ideologia da segurança nacional, o endurecimento do regime militar e a autorização para torturar e matar teriam ocorrido, mesmo sem o discurso de Márcio Moreira Alves.Em novembro de 1914, Freud escreveu a Lou Andreas-Salomé que a hipocrisia contaminava a mais alta civilização porque o homem estava organicamente incapacitado para a mesma e a guerra desfazia a ilusão da bondade da humanidade: a psique do homem moderno seria igual à do primitivo, que reaparece por detrás do homem culto.Em 1932, a Liga das Nações, entidade internacional que deveria reunir os países para prevenir a guerra, solicitou a Einstein que escolhesse um assunto e um interlocutor para iniciar uma troca de ideias útil à entidade. Einstein escolheu como tema a indagação sobre se haveria alguma forma de livrar a humanidade da guerra e indicou Freud como seu correspondente.Na carta escrita a Freud, Einstein reconhece haver em cada país uma minoria com desejo de poder político e econômico, com capacidade de dominar as emoções das massas e conduzir interessadamente à guerra, cabendo, então, as perguntas: Por que as pessoas aderem à eliminação do outro e de si mesmas? "O homem encerraria dentro de si um desejo de ódio e de destruição?" Daria para controlar a mente humana tornando-a à prova das psicoses do ódio?Freud, em longa resposta, acentua sua perspectiva da existência de duas forças: Eros, instinto do amor; e o instinto da destruição ou da morte, Tanatos. Mas adverte que ambos se combinam, pois a autopreservação como instinto da vida precisa recorrer, por vezes, à agressividade. E os impulsos destrutivos podem se revestir de motivos de natureza erótica ou idealista.Freud, em 1932, ao contrário do constante na carta de 1914, contava com a vitória do pacifismo, pois a civilização fortalecia o intelecto ante a vida do instinto e a internalização dos impulsos agressivos, com redução da ameaça de guerra.A História o desmentiu com a barbárie da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, os crimes de Stalin, a bomba atômica sobre Hiroshima, o Khmer Vermelho no Camboja.Mais que razões para a destruição, há uma atração pelo abuso de poder que leva à violência, em contraposição aos esforços cotidianos da humanidade na melhoria da qualidade de vida. Convive-se com essa contradição e não há motivo para crer que a paz prevalecerá sobre o instinto de agressividade. Resta apenas lembrar o mais constantemente, em letras maiúsculas, o passado de horror para tentar evitar, pelo medo, um futuro de destruição.*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DAACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA