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'Americanalhamo-nos', sem dúvida

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Por LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
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Jogos de palavras costumam ser muito interessantes e reveladores, lançando luz inesperada sobre valores mais profundos, sistemas de crenças e ideias de quem os faz. Há muito se diz, por exemplo, que a vida brasileira, especialmente a política, se teria "americanalhado", entendendo-se por isso um indesejável processo - indesejável por todos os títulos - de cópia servil de modos de vida e consumo provenientes do grande e ambíguo país do Norte, a mais antiga e, sob certos aspectos, desgastada e até corroída experiência republicana ainda em vigor no mundo.Desgastada e corroída, inclusive e sobretudo, pelo poder do dinheiro e, no entanto, dotada de irresistível expansividade por todo o século 20, como pelo menos um marxista clássico soube perceber in fieri, contrapondo a nascente racionalização americanista e fordista da produção e da sociedade ao acúmulo irracional de sedimentações do passado na velha Europa. Uma expansão que teria, por certo, dimensão imperial e intervencionista, em particular na América Latina, mas também se corporificaria na aliança antifascista com a antiga União Soviética (URSS), contribuindo para nos livrar do mal absoluto, em estado puro e sem nenhuma razão histórica.Com tudo isso, alheia à ambiguidade do excepcional fenômeno americano e apegada a um velho repertório que insiste em não passar, uma certa esquerda latino-americana ainda combate "o diabo" e seus vapores sulfurosos, é verdade que teatralmente e, no fundo, sem induzir, ainda que moderada e gradualmente, mudanças estruturais na situação de dependência. A "americanalhação" - aceitemos o termo - difunde-se onde menos se esperaria, até mesmo em realidades menos conflituosas, e determina comportamentos aparentemente ilógicos, como no caso de presidente e ex-presidente que se transforma em vendedor internacional das grandes empresas do próprio país, num movimento que, se não é rigorosamente ilegal nem destituído de rationale estratégica, se choca, evidentemente, com a retórica eleitoralmente rendosa que demoniza as "elites" e o "capital"."Americanalhamo-nos" também no plano interno. É possível que, carente de reflexão madura sobre os requisitos do moderno Estado Democrático de Direito, e ainda consumida pelo mal posto dilema de estar no governo e não ser poder - não ser todo o poder -, uma parte da nossa esquerda tenha considerado natural tentar apagar a fronteira entre partido, governo e Estado, dando seguidas mostras de apetite de ocupação e repartição selvagem do poder e de seus aparelhos, sob pretexto de fortalecer um Estado debilitado pela anterior época neoliberal.Dispensamo-nos de discutir se tivemos nos anos 1990 - nos governos Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso - versões tropicais do fundamentalismo mercantil de Ronald Reagan ou Margaret Thatcher. Sumariamente, poder-se-ia dizer que não as tivemos, com a possível exceção de áreas mais doutrinárias do governo Collor. De todo modo, o fato é que a prática disseminada de ocupação e loteamento não só enfraquece o poder regulatório forte do Estado - num momento em que as autoridades da República convocam, em uníssono, o "espírito animal" dos investidores privados -, como também é sinal preocupante de americanização, no sentido pejorativo do termo.Poderíamos sonhar em ver germinar por aqui, quem sabe, o exemplo de ex-presidentes como Jimmy Carter e Bill Clinton, ambos, e muito especialmente o último, com influência e visibilidade na política interna e na vida doméstica do Partido Democrata, mas sem projetarem a sombra de mando sobre os assuntos da República ou de titular das decisões em última instância. Nisso, contudo, não nos americanizamos; ao contrário, com sacudida pitada de malemolência made in Brazil, inventamos um ingrediente: em caso de quiproquó eleitoral, lá estará o "Pelé no banco de reservas".Em momentos críticos do século 20, os Estados Unidos souberam se reinventar e, assim, ditar boa parte dos rumos do mundo, para o bem e para o mal, como qualquer concepção realista das relações interestatais pode compreender (e sob muitos aspectos, criticar). Nos anos 1930, em meio às soluções extremadas que se delineavam como vencedoras, o reformismo rooseveltiano indicou novos papéis para o Estado, bem como um compromisso progressista entre a instância pública, o mercado e a sociedade civil. Um exemplo alto, que, sucessivamente, ao demonstrar limites, seria ampliado ou corrigido pela Grande Sociedade de Lyndon Johnson (ele mesmo, o da agressão ao Vietnã e outros episódios equívocos da guerra fria) e agora retomado por Barack Obama, ao expandir a cobertura de saúde e ao enfrentar, por meio de nova regulação, as finanças descontroladas que estão na origem da grande crise em que nos vemos mergulhados.Entre nós, no entanto, esse horizonte de longo prazo parece dissipar-se, em meio a um espírito autocongratulatório que exalta a inclusão social - absolutamente necessária, diga-se de passagem - em contexto de baixas taxas de desenvolvimento e, pior, sinais de enfraquecimento da estrutura produtiva, submetida a pressões que parecem pôr em questão a acidentada construção da nossa modernidade urbano-industrial e que, paradoxalmente, não mais provêm dos velhos núcleos do imperialismo. Logo, se isso for verdade, a retórica anti-ianque seria mais adequada a batalhas de guerras passadas, não exatamente às que temos pela frente.Acima de tudo, não há de ser com Estado centralizador e concentrador (de poder e tributos) e, incidentalmente, com mandatário que se coloca voluntariamente como lame duck - o desajeitado "pato manco" do fim de mandato dos presidentes americanos - que haveremos de defender e reconstruir um moderno tecido produtivo, a rede de bem-estar que a ele corresponde e a vida associativa livre e plural de que formos capazes.LUIZ SÉRGIO HENRIQUES, TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG