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Opinião|Anormalidade constante

Entidades que prestam serviços à saúde sofrem com a irresponsabilidade do Estado

Atualização:

Pouco conhecida no Brasil, a filósofa francesa Simone Weil demonstrou em sua obra O Enraizamento que um direito só existe quando é tomado como obrigação de alguém.

Se determinamos que os cidadãos brasileiros têm direito à saúde, significa que as esferas estatais têm o dever de provê-la. O drama da saúde no Brasil começa, portanto, pela divisão tortuosa das obrigações financeiras referentes à saúde entre os entes federativos: União, Estados e municípios. Enquanto há municípios que investem até 40% de seu orçamento em despesas de saúde, a União, por sua vez, mal chega aos 10%. E essa é só a ponta do iceberg.

A coisa realmente complica quando se procura investigar quem é, enfim, o Estado em cada caso de omissão contra o cidadão, qual a sua responsabilidade efetiva e quem é a pessoa física sobre a qual recai o dever de representar o Estado e fazer a obrigação ser cumprida.

Esse conjunto fragmentado compõe o cenário bizarro da anormalidade que rege nosso contrato social, nossas relações de cidadãos com o Estado brasileiro.

Outro francês, Émile Durkheim, fundador da Sociologia, estudou o fenômeno de que há um limite para a quota de anormalidade que a mente coletiva é capaz de perceber. Durkheim compreendeu que, quando os padrões descem abaixo do limite, a sociedade automaticamente ajusta o seu foco de percepção para achar normal o que antes lhe parecia anormal, para aceitar como banal, corriqueiro e até desejável o que antes a assustava como inusitado e escandaloso. Isso é chamado de “a constante de Durkheim”: quando a anormalidade é excessiva, transcendendo os limites admissíveis, ela tende a passar despercebida ou a ser simplesmente negada – e o intolerável toma a forma de inexistente. É exatamente o que vivemos no setor da saúde.

Os estabelecimentos prestadores de serviços à saúde no Brasil sofrem com atrasos sistemáticos dos repasses de recursos por procedimentos já efetuados. Governos municipais, estaduais e o federal simplesmente não pagam – e não informam quando vão pagar – por atendimentos efetuados à população pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E isso na esteira de uma defasagem na tabela de procedimentos que já está sem reajustes há duas décadas.

O Estado sustenta a ficção de que é possível pagar só 40% dos custos de uma cirurgia, de um transplante, de um procedimento médico e, ainda assim, manter as instituições funcionando.

Há, portanto, uma crise de responsabilidade: o Estado, de onde emanam as leis e o regramento social – e que é detentor do poder de fazer cumprir as leis –, é o primeiro a desconsiderá-las, não cumprindo suas obrigações em contratos vigentes cujas diretrizes foram elaboradas e sancionadas pelo próprio Estado.

Daí decorrem não apenas insegurança jurídica e desamparo financeiro: passamos, no Brasil, por uma onda sem precedentes de fechamentos de instituições hospitalares tradicionais, que quebraram não por má gestão ou irrelevância social, mas por terem sido corroídas financeiramente nas suas relações com o Estado brasileiro.

Neste momento histórico do Brasil, em que ações concretas contra a corrupção limpam os próprios pilares da República, a Confederação Nacional de Saúde (CNS) vem apontar este seguimento necessário para o avanço civilizatório do Brasil: a urgência de criar mecanismos que obriguem o Estado – e seus gestores – a cumprir os contratos sociais. E levantamos essa bandeira de debate público com a autoridade de quem, de fato, vem mantendo em operação o Sistema Único de Saúde no Brasil, financiando do próprio bolso a manutenção das entidades.

A CNS representa 270 mil estabelecimentos prestadores de serviços em saúde no Brasil, que mobilizam um contingente de 4 milhões de trabalhadores e geram quase 10% de toda a riqueza nacional. Nossos associados respondem por 70% dos atendimentos feitos pelo SUS no País.

Estamos, portanto, profundamente imersos no drama dos cortes orçamentários para a saúde, da crise do modelo de financiamento e do triste abismo entre as fronteiras tecnológicas do avanço da Medicina e a penúria de recursos às portas dos hospitais. Temos sido involuntárias testemunhas do povo brasileiro no seus momentos mais frágeis, aqueles em que estão em risco a saúde, o bem-estar e a vida de um pai, um filho, um irmão, um amigo.

Tem sido devastador para a esperança nacional perceber que o poder instituído é, ele próprio, o agente principal da insegurança e da desestabilização. No entanto, isso não nos autoriza a desmerecer os princípios e valores sobre os quais este poder se apoia.

Ao contrário, é justamente nas referências da democracia, do exercício político e do respeito aos direitos individuais que podemos refundar o poder – e a própria República.

A compreensão humana de que a política é a ciência do bem para o homem foi expressa por volta de três séculos antes de Cristo, na mais conhecida obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco. Neste texto seminal de nossa cultura, Aristóteles afirma que a virtude moral, tal como as artes, é adquirida por meio da repetição de seus atos correspondentes. Ambos os conceitos – da política como um bem humano e da virtude como um padrão alcançado pela repetição – são válidos para entender em perspectiva este momento histórico do Brasil e restaurar a esperança coletiva. E, então, depois de entender, poder propor mudanças válidas.

A CNS advoga que consertar a política é uma tarefa de todos nós, brasileiros que praticamos a virtude por repetição, dia após dia cumprindo nossas obrigações, valorizando o mérito, o esforço, o estudo e o trabalho. É assim que vamos vencer a anormalidade invisível que se instaurou como padrão no País e que tem permitido ao Estado portar-se irresponsavelmente, como o apocalíptico demônio do meio-dia, que se embriaga com o sangue dos inocentes.

* TÉRCIO KASTEN É PRESIDENTE DA CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE