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Opinião|As Arcadas e a crise da USP

Atualização:

A posse na titularidade é um rito de passagem que marca a chegada ao ápice da vida universitária. Como centro do saber, a universidade é um locus de reflexão, questionamento, divergência e luta, estando sempre sujeita a disputas sobre o alcance de suas tradições e a legitimidade de suas ações. Por isso, ao dar posse aos novos titulares das Arcadas, destaco três fatores que nortearão seu trabalho: as mudanças jurídicas advindas das transformações econômicas e tecnológicas, os dilemas trazidos por essas mudanças para o ensino jurídico e a crise de legitimidade de uma universidade que se converteu numa instituição burocratizada e financeiramente asfixiada. As mudanças jurídicas envolvem a discussão sobre a capacidade dos Estados de controlar mercados transterritoriais e sobre o contraste entre a lentidão da política interna e a rapidez das transações econômicas globais. Nesse cenário, as instituições jurídicas não conseguem tutelar o que não conhecem e muitos juristas reconhecem suas limitações em temas cuja complexidade técnica não dominam. Trata-se de uma ignorância epistemológica sobre o impacto, no direito, do deslocamento de decisões legislativas para sistemas intergovernamentais e corpos não políticos. Como intervir nesse processo com base em categorias normativas concebidas nos séculos 18 e 19 - um período de afirmação dos princípios da soberania e da legalidade? O que marca as Faculdades de Direito (FDs) é a dificuldade de perceber o que dois juristas - Orlando Gomes e Santiago Dantas - detectaram nos anos 1950. Ao contrário de seus pares, eles souberam identificar o desajustamento entre a estrutura social e a superestrutura jurídica, na transição de uma sociedade rural para uma sociedade urbana, e a subsequente publicização do direito privado e a administrativização do direito público, como decorrência do modelo de capitalismo que marcou nossa industrialização. "A moldura do pensamento jurídico formalista tem admitido apenas os aspectos políticos da crise do direito e repelido seus termos sociais. Autores que interpretam artigo por artigo de um código têm visão deformada do sistema jurídico. O mister de que se ocupam está ao alcance de todas as mediocridades", afirmava Gomes. Santiago denunciava a alienação dos cursos jurídicos, o que os levava a formar bacharéis incapazes de perceber que, quando as classes dirigentes são medíocres, a democracia está em risco. Nove anos antes do golpe de 1964, ele dizia que a falta de ajustamento entre as classes dirigente e dirigida reforça processos antidemocráticos. A seu ver, esse risco poderia ser afastado por uma educação jurídica de qualidade e capaz de "orientar para as grandes aspirações comuns". Insensível a essas observações, o ensino jurídico permanece incapaz de absorver as demandas sociais. Pouco criativo, continua voltado para a reprodução da sabedoria codificada. Prossegue como centro de transmissão de um conhecimento jurídico oficial, insensível para a advocacia pública estruturante e para a advocacia de interesses sociais complexos. "O destino de uma faculdade é o destino do direito a que ela serve", dizia Dantas. Indo além, pode-se afirmar que o destino de uma FD é o destino da universidade a que pertence. Criada como convergência do saber com o poder, na perspectiva de um projeto político voltado para a formação de uma elite baseada na liderança científica, a USP vive hoje uma crise financeira, funcional e moral. Seu sentido original gravitava em torno dos valores éticos da autonomia individual. O projeto de ensino era alicerçado num ensino de filosofia pensado em compasso com uma política liberal que enfatizava a harmonia entre progresso científico e progresso industrial. O sucesso da USP tornou-se motivo dos problemas que hoje enfrenta. A mudança do perfil geo-ocupacional da sociedade levou à massificação. A ideia de formação cultural com rigor deu vez à diversificação de cursos, como resposta às especificidades do mercado de trabalho, e a uma expansão de discutíveis programas de pesquisa e ensino. A USP perdeu sua identidade originária, deixando de ser a alma do saber inovador para se transformar numa linha de produção de técnicos e burocratas. Cresceu desordenadamente e teve questionada sua legitimidade como instituição formativa. A pretensão de que poderia ser uma espécie de guardiã do conhecimento, com seus efeitos socialmente transformadores, foi esquecida. Cindida entre cultura geral e formação profissional, a história da USP registra tentativas malsucedidas de conjugar educação humanística, capacitação e treinamento profissional, que banalizaram sua missão formativa. E isso inflou a administração central, introduzindo mecanismos de controle estranhos à lógica própria do conhecimento e aprofundando a verticalização do processo decisório pelos conselhos centrais, em detrimento da autonomia das unidades. Para sair do estado de anomia a USP precisa de agilidade decisória e imaginação criadora. Tem de se reinventar com base no princípio do mérito. Tem de sair das amarras do corporativismo e recuperar a interação de um ensino baseado em valores universais e democráticos com as respostas às reivindicações sociais. Tem de pôr fim a um nepotismo muitas vezes travestido de autoridade acadêmica. Antigos professores ensinaram-me que todo conhecimento é uma prática social cujo labor específico é dar sentido a outras práticas sociais, contribuindo para sua transformação. Também ensinaram que uma sociedade complexa é uma configuração de várias formas de conhecimento, adequadas às várias práticas sociais. De fato, a universidade é um conjunto de práticas sociais alicerçadas no reconhecimento público de seus valores e de sua função educativa. Daí o desafio de reerguê-la como locus privilegiado de uma educação orientada para a liberdade, para a reflexão e para a criatividade. É o que se espera dos novos docentes titulares das Arcadas.*José Eduardo Faria é chefe do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP Este texto é um resumo do discurso de saudação, como decano, aos novos professores titulares da Fadusp.

Opinião por José Eduardo Faria