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Opinião|Ato institucional no futebol

Atualização:

Se há atividade que surgiu e vicejou na sociedade sem a interferência do poder público foi o futebol, sempre gerido no Brasil e no mundo por entidades independentes do Estado. A condição de torcedor rompe diferenças sociais e econômicas. Os torcedores unem-se sob a mesma bandeira ou se antagonizam, de igual para igual: o pobre e o rico, o analfabeto e o intelectual sofisticado. Discute-se e conversa-se sobre futebol em todos os cantos. Nos estádios, nos bares, em casa alçam-se pedidos aos céus para que o pênalti seja convertido ou defendido, ficando de plantão santos e orixás para receber as preces calorosas. Já nos ensinou o grande intérprete da vida cotidiana Nelson Rodrigues, na crônica Clube não é boteco, a importância dos valores gratuitos, pois se o futebol profissional exige dinheiro, não é só dinheiro, pois implica os valores gratuitos que conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima na qual participam da luta dois clubes e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos. Nada mais antiestatal do que o futebol profissional. Mas o governo, sob a escusa de resolver as dívidas fiscais dos clubes, aproveita para tentar estatizá-lo. A Medida Provisória n.º 671, editada por Dilma Rousseff, é um verdadeiro ato institucional a violar os princípios regentes da atividade esportiva presentes na Constituição, bem como interferindo na organização interna não só dos clubes socorridos pelo parcelamento de dívidas fiscais, mas também nas federações e na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), passando por cima dos seus estatutos. Se o Estado deve incentivar as práticas esportivas, em especial o desporto educacional, cumpre, todavia, respeitar o princípio inscrito no artigo 217, I, da Constituição observando "a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento". Compreensivo com os clubes que por má administração e falta de controles se endividaram e deixaram de cumprir suas obrigações tributárias, o governo cria programa de parcelamento das dívidas, o que não autoriza desconhecer a autonomia dos clubes e das organizações do futebol. O presente ato institucional submete o clube devedor aderente ao pagamento parcelado a regras em nada pertinentes ao aspecto financeiro, mas atinentes à sua organização, com a gravame de impor custos. Interfere-se na estrutura da CBF e das federações, não integrantes do programa de parcelamento, sem visar à garantia do direito ao esporte. Assim, constitui obrigação do clube aderente ao programa fixar o mandato do presidente e diretores em até quatro anos, permitida uma recondução; manutenção de investimento mínimo na formação de atletas e no futebol feminino; afastamento imediato e inelegibilidade de dirigente que praticar ato de gestão irregular (artigo 4o.). Impõe o ato institucional a entidade de administração do desporto, como a CBF, a participação de atletas nos órgãos colegiados de direção e na eleição para cargos da entidade, bem como representação da categoria de atletas no âmbito dos órgãos e conselhos técnicos incumbidos da aprovação de regulamentos das competições. Essas imposições às entidades de administração do futebol são reforçadas ao se determinar, no artigo 5o, que os clubes aderentes ao parcelamento apenas podem participar de campeonatos organizados por entidades que respeitem a representação de atletas no âmbito dos conselhos técnicos, como acima foi destacado, e tenham no seu estatuto a previsão de participação de atletas nos órgãos diretivos. E o mais grave: exige-se que a entidade de administração do desporto preveja no seu estatuto o descenso para a divisão inferior ou a não participação no campeonato do ano seguinte do clube que desrespeitar as condições do artigo 4o, por exemplo, o investimento na formação de atletas ou no futebol feminino. Um campeão da Série A poderá ser rebaixado em vista do descumprimento dessa obrigação, muitas vezes difícil diante da necessidade de redução do déficit, que é outra imposição da medida provisória. O vezo ditatorial brota sem nenhum disfarce: a CBF e as federações que alterem o estatuto, senão os times aderentes ao programa não podem participar do campeonato por elas organizado. E por lei faz-se o estatuto de clubes e de associações privadas, desrespeitando ato jurídico perfeito e praticando-se verdadeira extorsão: ou se muda o estatuto, como quer o governo, ou correm risco as federações e a CBF, pois se não o modificarem, adotando a disciplina imposta pela medida provisória, indica-se e instiga-se o clube a integrar uma nova liga respeitadora da ditadura de Dilma & Cia. E para controlar todas estas exigências, como impor forçosamente a cogestão entre dirigentes e atletas, decidiu-se criar um novo organismo, uma espécie de Futebrás, denominado Autoridade Pública de Governança do Futebol (artigo 21), órgão estatal dirigido por membros do governo e da sociedade encarregado não só de controlar o cumprimento das obrigações referidas, como instaurar processos e impor sanções. Caberá à Futebrás (artigo 21) fixar o valor a ser aplicado no futebol feminino, bem como o porcentual mínimo de participação de atletas nos órgãos da CBF ou das federações incumbidos de aprovação dos regulamentos das competições. Conclusão: o futebol profissional, devedor da Fazenda Pública, torna-se um instrumento na mão do Estado, pois clubes, federações e CBF devem adequar os seus estatutos ao ato institucional, sob pena de restarem esvaziados os campeonatos das Séries A, B, C, D e os estaduais, paulista, baiano, etc. O alto valor da liberdade surge fulgurante em face do autoritarismo. De popular o futebol passa a ser objeto de populismo estatizante combinado com a desfaçatez de uma extorsão flagrante: ou adere ou desce de série. ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SENIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior