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Opinião|Atropelos no Supremo

Atualização:

O julgamento pelo STF da descriminalização do porte de drogas para uso próprio cinge-se a uma única análise: a conduta ofende a Constituição? Só se positiva a resposta terá o STF legitimidade para ferir de morte o velho artigo de lei aplicado no País há tempo – sob pena de ultrapassar sua atribuição de aplicador do Direito e invadir o domínio legislativo.

Para o ministro Gilmar Mendes, a saúde pública não é afetada e a conduta encontra abrigo na Carta Magna, no direito à vida privada e à intimidade dos que portam qualquer droga para uso próprio. Já os votos do ministro Fachin, por tornar impune a conduta dos que portam maconha, e do ministro Barroso, por permitir o plantio de até seis pés e fixar quantidade máxima dessa droga para diferenciar o traficante do usuário (25 g), levantam questões que cabem tão só àquele que cria, altera e revoga leis: o Legislativo. E esse Poder, em 2006, ao abolir com acerto a descabida e desproporcional pena de prisão, manteve a conduta como crime para proteger a saúde pública – bem tutelado pela Lei Maior – e estabeleceu penas compatíveis e proporcionais com o objetivo de ressocialização do usuário e dependente.

A Constituição é um todo harmônico e como tal deve ser interpretada. Exige – notadamente de seu guardião, o STF – fidelidade na hermenêutica. Ao admitir o porte de drogas para uso pessoal como um direito, é de considerar outros direitos, igualmente constitucionais, que se sobrepõem àquele: o dever do Estado de proteger a saúde pública, de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com prioridade, educação, dignidade, respeito e o bem-estar de toda a sociedade, não só de parte dela. Direitos individuais são suscetíveis de limitação ao atingirem direitos de outros cidadãos.

Apesar das mazelas a que se assiste diariamente no País, se não se presencia o uso de drogas em locais públicos, é por medo da polícia. É o poder intimidativo, coercitivo, que só a norma penal incriminadora tem com o fito de, por um lado, impor obrigações educativas e, por outro, inibir a exibição de vícios em público para não incomodar pessoas nem incentivar jovens e crianças. É o Estado juiz fazendo-se presente também na educação, em especial dos jovens – alvo fácil dos traficantes que se travestem de usuários ou amigos.

É dever do Estado usar todos os meios de que dispõe para evitar que jovens usem ou continuem a usar drogas e partam para outras que surgem, sem repressão à altura, e não raro, misturadas ou não, levam à morte por overdose. É dever do Estado proteger os jovens dos efeitos psicológicos e dos quadros psíquicos deletérios não imediatos, incluídos os causados pela “droga leve”, a maconha. Cabe inibir as mortes provocadas pelos que dirigem sob o efeito de drogas. Aumentam os crimes com grave ameaça e violência física cujos autores, por agirem sob a ação de drogas, usam de perversidade contra as vítimas e são beneficiados com redução da pena, pois se tornaram parcialmente incapazes em razão da dependência química – causada pelo uso do direito reconhecido nos três votos.

A gritante inversão de valores é a que se anuncia: em nome de supostos direitos de usuários e toxicômanos, abre-se espaço a novos e potenciais, expostos àqueles e despidos da proteção do Estado. O primeiro voto registra caber à pessoa decidir pelo uso de drogas. E ao viciado, que perdeu o poder de autodeterminação pelo uso desse suposto direito? Profissionais da saúde e pais que vivem o drama do vício dos filhos sabem que o caminho das drogas muitas vezes é sem volta e não só o filho, mas toda família é atingida. Conhecem a deficiente estrutura da saúde pública – justamente o bem protegido pela norma penal a que se pretende pôr fim –, que, como a educação, longe está de ser prioridade no País. Se a população dependente de crack da cidade de São Paulo decidir internar-se, haverá vagas na rede pública? A cracolândia é exemplo vivo de que a conduta atinge, e muito, a saúde pública. A prevalecer o entendimento de que ela não é agredida e ser um direito portar droga para uso pessoal, como sustentar a partir daí a legalidade das internações compulsórias feitas pelo Estado? Poderá ele lavar as mãos? Outras cracrolândias surgirão pelo Brasil, pois o crack, com rápido efeito de dependência, é barato. E a maconha, cujo plantio é rendoso, não deixa de ser porta aberta para outras drogas.

A realidade brasileira, nesse particular, não permite ser comparada a nenhuma da Europa. A Holanda, citada no primeiro voto, é um dos países mais civilizados do mundo, o que permitiu aos governantes tolerar a entrada de pessoas em coffee shops, e só neles, para fazerem uso de maconha, e só dela, em quantidade determinada, e os cidadãos cumprem normas. A criminalidade ali longe está de ser problema. O Brasil, ao contrário, é palco de crescente criminalidade, que invade até os meandros de Poderes constituídos, para constrangimento dos brasileiros de bem.

Os representantes do povo reconheceram a gravidade do tráfico de drogas e o equipararam à tortura com o registro na Carta Magna de serem ambos insuscetíveis de fiança, graça e anistia. Não seria clara ofensa à Constituição e incoerente o entendimento de que possa ela garantir como direito fundamental o porte para uso pessoal de drogas e a consequente dependência, se ambos acabam por fortalecer o tráfico? O intérprete da Carta deve sempre buscar a vontade do constituinte, nenhuma outra. E é o ministro Gilmar Mendes, em livro, que alerta para o perigo na interpretação de normas constitucionais: “Nos últimos tempos, a pretexto de otimizar a Constituição, as Cortes Constitucionais vêm proferindo decisões de nítido caráter legislativo, o que lhes têm custado críticas acerbas...”.

Oportuno transcrever parte de editorial deste jornal, de 8/9, que trata da tese do Estado de Coisas Inconstitucionais: “... por serem vagos e imprecisos, os princípios jurídicos podem servir para tudo. Na medida em que permitem as mais absurdas interpretações, eles tornam as decisões judiciais imprevisíveis, comprometendo a segurança do direito”.

* MARCIA DE HOLANDA MONTENEGRO É PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICODO ESTADO DE SÃO PAULO