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Opinião|Aula magna de preconceito, na USP

Atualização:

A eugenia constituiu uma doutrina genocida espalhada no século 20, mas com raízes antigas no pensamento ocidental. O etnocentrismo que a precede é patente na Política de Aristóteles (Livro VI, 1327b). Os nórdicos, diz o preceptor de Alexandre, são valentes, mas burros. Os asiáticos têm inteligência, mas se acovardam. Já os helenos reúnem mente atilada e valentia. Eles seriam os únicos a quem serve o designativo “homem”. Mas para os atenienses “grego” bastava, porque o resto… era o resto. Como é cego para a dignidade dos estrangeiros, o filósofo marca as mulheres como inferiores, e assim por diante. A linhagem dos teóricos ocidentais que desprezam etnias não brancas é imensa. Ela inclui I. Kant, David Hume, Hegel e outros. Tempos atrás publiquei um artigo intitulado A Mulher e a Desrazão Ocidental (no livro Lux in Tenebris). Nele cito exemplos nada edificantes da filosofia presa ao racismo, ao gênero masculino, à violência contra os mais fracos. Mesmo em países democráticos brotam casos de preconceito larvar contra judeus, negros, mulheres e pobres. No caso da eugenia, o processo Buck versus Bell, definido na Suprema Corte norte-americana sob a égide do juiz Oliver Wendell Holmes, mostra até onde pode ir a injustiça contra indivíduos ou grupos sem riqueza e poder. A esterilização forçada de uma suposta ou efetiva doente mental - Carrie Buck -, em nome da saúde pública, tem sua joia discursiva na sentença de Holmes. Para ele, “três gerações de imbecis é muito”. O magistrado, paradoxalmente, advogou em favor da livre expressão. E, no entanto, as manifestações hoje reprimidas nos EUA - Baltimore é uma cidade a mais - contra assassinatos cometidos pela polícia provam que a liberdade de expressão vale para quem ostenta colorido alvo da pele. Edwin Black (A Guerra Contra os Fracos) mostra o itinerário da eugenia, dos EUA à Europa, daí às práticas nazistas contra doentes. A eutanásia, inaugurada por um decreto secreto de Hitler na Aktion T4, foi ampliada para o massacre dos “inferiores” ao branco, louro, corajoso, inteligente herdeiro dos gregos, o suposto ariano germânico. As linhas acima servem como introito a um atentado cometido na USP contra os afrodescendentes. Um professor, Peter Lees Pearson, no Instituto de Biociências (22/4/2015), em aula de pós-graduação discorreu apologeticamente sobre o artigo de J. Philippe Rusthon e Arthur R. Jensen intitulado James Watson’s mostly inconvenient truth: race realism and moralistic fallacy. Segundo esses autores, nada originais, pois repetem um palavrório que impera desde Aristóteles, os testes de Q.I. comprovariam que a força cognitiva dos negros africanos seria inferior à dos brancos e asiáticos. O docente silencia que James Watson perdeu o cargo de conselheiro do Spring Harbor Laboratory (CSHL) de Nova York por exagerar em sua militância racista. Afrodescendentes entraram na sala de aula para discutir o dogma exposto por Lees Pearson. A postura do professor seguiu a linha grega de argumentação. Nela, o xingatório do termo “bárbaro” designa indivíduos sem capacidade de falar a superior língua helênica. Assim, eles seriam desprovidos do logos, da razão. Pearson repete todos os pedantes históricos ao ironizar os jovens. “Quem não fala inglês, fique sem se expressar”, decretou o propagandista disfarçado de pesquisador. Cabe à USP justificar o injustificável: como e por quem foi convidada uma pessoa com tais formas de agir? É moda, em tempos de conservadorismo com tinturas fascistas, desprezar as Luzes, a filosofia emancipadora do século 18. Nem todos os integrantes daquele movimento, é certo, foram democráticos. Voltaire é prova. Mas ele batalhou contra a tortura e os processos judiciais injustos, defendeu a minoria protestante. O caso Calas o imortalizou. Diderot e Condorcet mostraram coragem inaudita ao defenderem os negros contra a violência branca. No caso de Condorcet, também os judeus e as mulheres receberam apoio combativo. Condorcet invectivou os verdadeiros bandidos de seu tempo, aqueles brancos que inventaram a mais “horrível barbárie”. Em escrito sobre o pensamento de Pascal (1776), ele propõe a renúncia ao açúcar, guloseima “suja pelo sangue de nossos irmãos negros”. E lutou contra o Código Negro, que autorizava os donos de escravos a torturar sua mão de obra. Em 1781 publicou, com o pseudônimo de Joachim Schwartz (Joaquim Negro), escrito em que se dirigia aos afrodescendentes. A natureza, dizia ele, vos formou “para ter o mesmo espírito, a mesma razão, as mesmas virtudes dos brancos. (…) No relativo aos brancos das colônias, não vos faço a injúria de a eles vos comparar. Sei bem o quanto a vossa fidelidade, probidade, coragem fazem enrubescer os donos de escravos. Se procurássemos um homem nas ilhas da América, ele não seria encontrado entre as pessoas de carne branca”. A lembrança do filósofo Diógenes é certeira: entre escravistas, sobretudo quando se imaginam gregos e adeptos da filosofia, não existe humanidade, mas elegante e covarde selvageria. Graças aos iluministas e democratas, a escravidão foi abolida na França em 1794. Os escravistas franceses negaram-se a obedecer à lei e pediram ajuda dos espanhóis para vencer Toussaint L’ Ouverture, o líder da negritude no Haiti. A derrota do general negro é percebida até hoje naquele triste país, corroído pela miséria após ditaduras amigas dos brancos, como a do sinistro Papa Doc. No Termidor veio o triunfo de Bonaparte e a escravidão foi restabelecida. O imperador guerreiro destruiu os revoltados escravos. Só em 1848 a escravidão foi novamente abolida. Na Inglaterra tal fato ocorreu em 1833 e nos EUA, em 1865. No Brasil, apesar da Lei Áurea, ainda hoje existem escravidão e preconceitos nada disfarçados em todas as camadas sociais brancas. As autoridades fingem reprimir o racismo e o antissemitismo, como alguns colegas da USP fingem liberdade acadêmica e democracia. Desde que elas sejam para pessoas de pela alva. Shame on you, colegas!

*PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE ‘RAZÃO DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’ (PERSPECTIVA)

Opinião por ROBERTO ROMANO