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Avanço na política externa

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Por Redação
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Foi um encontro da convicção com a oportunidade. A presidente eleita, Dilma Rousseff, escolheu o Washington Post, o matutino da elite do poder da capital dos Estados Unidos, para dar a sua primeira entrevista exclusiva a um jornal desde o triunfo nas urnas de 31 de outubro. Nela, além de confirmar de viva voz que pretende visitar o presidente Barack Obama logo nos dias seguintes à posse, "se ele me receber", Dilma anunciou o equivalente à primeira mudança na política externa da era Lula - e em um dos seus pontos mais polêmicos: a invariável abstenção nas votações sobre violações de direitos humanos denunciadas à ONU.No atual governo, o Itamaraty adotou a linha de manter-se neutro diante de projetos de resolução condenando abusos contra os princípios consagrados na Carta da ONU. Para o chanceler Celso Amorim, tais resoluções seriam hipócritas, politicamente motivadas e inócuas, quando não contraproducentes. Já o Brasil, ao lavar as mãos, se credenciaria junto aos países acusados para persuadi-los, em amigáveis conversações discretas, a mudar de atitude. Não consta que isso tenha acontecido, por exemplo, na Coreia do Norte, Mianmar, Sri Lanka e Sudão. Ou mesmo em Cuba, onde o que fez a diferença foram as pressões da Igreja e da União Europeia.No mês passado, por 88 votos a 44, a ONU condenou o Irã por seus recorrentes atentados aos direitos humanos, incluindo a sentença de apedrejamento da viúva Sakineh Ashtiani, acusada de "adultério". O Brasil e 56 outros países se abstiveram. Antes, Lula dissera que, "se essa mulher está causando incômodo (sic), vamos recebê-la no Brasil", mas o governo de Teerã rejeitou a aparente oferta. Radicalmente diferente foi a reação de Dilma quando perguntada sobre Sakineh na única entrevista coletiva concedida depois da eleição. Ela qualificou a lapidação de uma pessoa como "uma coisa bárbara, mesmo considerando usos e costumes de outros países".Agora, ao Washington Post ela deu dois passos além de reiterar o seu horror a "práticas com características medievais" contra mulheres. Disse que não fará "quaisquer concessões" nessa matéria e não mudará de posição depois de tomar posse. "Eu não concordo com o modo como o Brasil votou (na ONU)", admitiu com admirável franqueza. Se assim é, no governo Dilma a diplomacia brasileira deixará de se abster automaticamente em votações do gênero. O Itamaraty deverá decidir caso a caso como se conduzir, depois de se entender com o Planalto. Será um avanço substantivo em relação à política de se acumpliciar com clamorosas violações de direitos humanos para fazer boa figura junto aos governos que as cometem.A mudança decerto implicará também no descarte da teoria complacente com as tiranias que consiste em considerar os direitos humanos como valores relativos que o Ocidente teria a pretensão de impor a nações de outra formação histórica e cultural. Essa visão amoral travestida de análise antropológica não tem adeptos apenas em setores do Itamaraty afins ao chanceler Celso Amorim. Não faz muito, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, sacou da mesma enormidade para explicar por que o apedrejamento da iraniana não seria "problema nosso".Quaisquer que sejam as suas demais virtudes (ou seus defeitos), Dilma não admite "nuançar" a questão, como declarou ao Post. Na entrevista - concedida por sinal à editora Lally Weymouth, filha da legendária publisher do jornal, Katharine Graham -, Dilma invocou nesse sentido a sua condição de mulher e, respondendo a uma pergunta específica, disse não haver a menor dúvida de que o seu passado de prisioneira política a faz ter "um compromisso histórico com todos que foram ou estão presos por exprimir os seus pontos de vista, suas próprias opiniões".Ela procura distinguir entre compromissos dessa natureza e a interlocução com o Irã, como parte de uma estratégia de construção da paz no Oriente Médio - valha o que valer, acrescente-se, o envolvimento do Brasil. De todo modo, a entrevista contribuirá em não pouca medida para Dilma ser recebida de braços abertos na capital da "grande nação" com que ela quer "forjar laços mais estreitos".