Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Casa comum, responsabilidade de todos

Atualização:

Na Quarta-Feira de Cinzas a Igreja Católica inicia a Quaresma, durante a qual os fiéis católicos se preparam para celebrar a Páscoa, a maior festa dos cristãos. Na Quaresma são orientados a avaliar os critérios e valores que orientam a sua existência e a mudar, se for preciso, a maneira de pensar e agir, tendo como referência o amor a Deus e ao próximo. São recomendados, especialmente, os exercícios da oração, do jejum e da esmola; e a penitência deve ser traduzida em obras concretas de misericórdia e solidariedade social.

No Brasil, há 52 anos a Igreja Católica insere a Campanha da Fraternidade no período quaresmal, com o objetivo de despertar o espírito comunitário, em particular entre os cristãos, comprometendo-os na vida fraterna a partir da justiça e do amor, que são exigências centrais do Evangelho de Cristo. Pela Campanha da Fraternidade também se busca despertar consciência da responsabilidade de todos na promoção do bem comum e da dignidade humana, em vista de uma sociedade justa e solidária.

Neste ano, mais uma vez a Campanha da Fraternidade é ecumênica, envolvendo as igrejas participantes do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). O tema escolhido – Casa comum, nossa responsabilidade – enfoca a questão do saneamento básico à luz da fraternidade. Talvez isso surpreenda, por não haver, aparentemente, relação direta com a fé religiosa.

No tema do saneamento, porém, está em jogo a sanidade do ambiente em que vivemos a responsabilidade de cada um pelo bem comum. Nossa atitude em relação ao cuidado da “casa comum” não é indiferente e envolve a ética e a moral. Na sua encíclica Laudato sì, o papa Francisco trata da questão ambiental em sua amplitude e complexidade e o saneamento básico é uma das realidades contempladas.

O saneamento inclui o abastecimento de água com qualidade boa, o manejo adequado de esgotos sanitários e industriais, das águas pluviais, dos resíduos sólidos e do lixo. Saneamento deficiente é fonte de problemas de saúde pública e as maiores vítimas são as crianças, as pessoas idosas e os pobres. O saneamento básico previne contra a proliferação de doenças e assegura qualidade de vida aos cidadãos.

No Brasil ainda há muito a ser feito em relação ao saneamento. A Lei Federal n.º 11.455, de janeiro de 2007, regula o saneamento e prevê que cada município deve elaborar seu próprio plano municipal de saneamento básico. A mesma lei também dispõe que se for terceirizado o saneamento seja fiscalizado por uma agência reguladora independente, à qual cabe averiguar a qualidade dos serviços executados.

A realidade brasileira está abaixo do desejável: embora cerca de 82% da população tenha acesso à água tratada, apenas 50% usufruem coleta de esgotos. Porém o esgoto só é tratado em 39%; o restante vai direto para o mar, os rios e lagos, sujando o ambiente. O resultado está no cenário urbano bem conhecido dos paulistanos, com os rios malcheirosos, parecidos com canais de esgoto a céu aberto! Feio para a nossa casa comum! E não é diferente em outras cidades, grandes e pequenas, Brasil afora.

A coleta de resíduos sólidos domiciliares alcança apenas 10% da população; 72,3% dos resíduos produzidos são descartados de forma inadequada em aterros sanitários e lixões, quando não se acham espalhados pelas calçadas e por lotes baldios. Os resíduos orgânicos representam 69% do material descartado. Segundo o Ministério da Agricultura, cerca de 19 milhões de pessoas poderiam ser alimentadas diariamente com os alimentos desperdiçados.

Às vezes as estatísticas iludem: em São Paulo, o saneamento básico beneficia 95% da população, mas os 5% restantes, sem água potável nem rede de esgotos, representam cerca de 1 milhão de pessoas! A situação é grave e exige de cristãos e não cristãos uma boa reação e mudanças no modo de pensar e agir. Em sentido religioso, dizemos que há necessidade de verdadeira conversão.

O lema da Campanha da Fraternidade vem do profeta Amós: “Quero ver o direito brotar como fonte e a justiça a correr qual riacho que não seca” (Am 5,24). Justiça e direito não podem ser como rio temporário, que só corre nas chuvaradas, mas seca na estiagem. O saneamento básico merece atenção e cuidados constantes. O respeito à conservação e sanidade da nossa casa comum é questão de justiça e solidariedade, que não podem faltar jamais. E embora se trate de atribuição primária dos órgãos públicos, o saneamento também requer a colaboração de todos os cidadãos.

Na encíclica Laudato sì (2015), o papa Francisco ensina que o amor social é a chave para o desenvolvimento autêntico: “Para tornar a sociedade mais humana e mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social, política, econômica e cultural, fazendo dele a norma constante e suprema do agir” (LS, 231).

Na prática, as coisas nem são tão complicadas e requerem atenção e persistência em pequenos hábitos, como selecionar e destinar corretamente o lixo, usar racionalmente a água, evitar o desperdício de alimentos, economizar energia... O combate sistemático ao mosquito e a outros fatores de transmissão de doenças também faz parte do cuidado da casa comum. Evidentemente, isso também requer infraestrutura e políticas públicas de saneamento, que competem aos poderes públicos.

A Campanha da Fraternidade deste ano pode ser uma boa ocasião para rever comportamentos e hábitos contrários à sanidade de nossa casa comum. E não esqueçamos: participar ativamente na elaboração de políticas públicas eficazes para o saneamento básico também faz parte do cuidado da casa comum, assim como reivindicar dos governantes, se for preciso, a implementação do saneamento básico.

* DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Opinião por DOM ODILO P. SCHERER