Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Casa tomada e arruinada

Atualização:

O conto Casa Tomada, de Julio Cortázar, talvez seja um dos mais analisados de sua extensa obra de mais de 200 contos e novellas. Não é para menos. Afinal, as alegorias e os símbolos ali tratados se rendem facilmente às interpretações acerca dos rumos populistas e isolacionistas tomados pelo Cone Sul no pós-guerra. Na casa, os dois habitantes são pouco a pouco cercados por intrusos jamais descritos ou vistos – apenas se escutam seus barulhos, a batida da porta, o ruído dos passos, enquanto se enfurnam na casa e a tomam como se sua morada fosse, a despeito dos donos de direito que ali residem. A claustrofobia, a sensação de impotência, a resignação marcam as atitudes dos moradores, conformados com situação que são não capazes de evitar.

Como os personagens de Cortázar está a população brasileira, claustrofóbica, impotente, resignada com a tragédia do desgoverno de Dilma Rousseff. A presidente, que iniciou o seu segundo mandato prometendo a mudança, tentando arrancar a fórceps a esperança do povo para que voltasse a consumir, a confiança do empresário para que voltasse a investir, encerra 2015 deixando para trás um rastro de destruição. É claro que parte dos destroços se deve à dramática disfuncionalidade política do País, alimentada pela sujeira desvelada pela Operação Lava Jato. Porém a demolição de Dilma é também resultado de suas vacilações perversas entre a promoção do ajuste econômico inevitável e a tentação de ceder às suas convicções, amplamente evidenciadas ao longo de seu primeiro mandato.

Lembro-me bem de que, quando do resultado das eleições de outubro de 2014, julgava, como tantos outros economistas, que a presidente iria “redobrar as apostas” em suas políticas fracassadas. Surpresa fiquei quando Dilma chamou Joaquim Levy para chefiar a área econômica de sua equipe, gesto mal interpretado, reconheço. Mal interpretado não porque o ministro escolhido não fosse a pessoa certa para ocupar a casa desarrumada. Credenciais para arrumá-la ele as tinha de sobra. Convicções, também. Faltava, entretanto, o respaldo da governante vacilante. A ausência de apoio da chefe da Nação não tardou a mostrar que o ajuste era órfão de seu pilar mais fundamental. Afinal, que Congresso seria convencido de sua necessidade se a própria presidente jamais se mostrara convicta? Que dirá um Congresso estraçalhado como o que hoje vemos, atônitos.

Diante da notória titubeação presidencial, a casa aos poucos foi tomada. O falso debate desenvolvimentista brasileiro passou a acusar o ajuste que não ocorreu – o ajuste fiscal, que fique claro, não a remoção dos aberrantes congelamentos de preços que deram a tônica à política “dilmista” de 2012 a 2014 – pela queda brutal da atividade econômica. O ajuste que foi sem jamais ter ido virou a válvula de escape daqueles que não conseguem enxergar nas políticas artificiais de estímulo ao consumo e ao crédito o descalabro que hoje assola a economia brasileira. Para esse grupo de pensadores e formadores de opinião, deveríamos estar gastando mais, endividando-nos mais. Eis que, entretanto, a política que advogam é a principal causa da brutal perda de riqueza sofrida pelo País neste último ano.

Mas a economia não aceita abusos ou artificialismos. Ao menos, não por tanto tempo assim. O ano encerra-se com a pior recessão desde 1990, com a inflação beirando os 11% e um rombo escandaloso nas contas públicas, o que pelo segundo ano consecutivo demonstra a falta de respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Agências internacionais de risco têm lá suas vicissitudes, como a presidente da República. Contudo, perante a terra arrasada que é a economia brasileira, não é possível atacá-las. Retiraram o nosso cobiçado grau de investimento, aquele que o ex-presidente Lula chamou, em 2008, de “selo de país sério”. Já dizia o general De Gaulle que sério o Brasil não é. Os números estão aí para comprovar que a falta de diplomacia do líder francês jamais esteve equivocada.

Na esteira dos últimos acontecimentos, da instalação de um processo de impeachment contra a presidente que vacila sem constrangimentos, a constatação: Dilma vai redobrar a aposta. Aquela aposta que pensávamos que faria há um ano, aquela convicção que jamais perdeu acerca dos poderes mágicos da “nova matriz econômica”, de seus derivados, ainda que se tenham provado tóxicos como a lama derramada em Mariana. Para que sobreviva ao início do ano que vem, quando ao processo de impeachment se juntará a alta do desemprego e a extinção de benefícios aprovada pelo Congresso este ano, é preciso reanimar, ainda que por tempo limitado, a moribunda economia. O ensaio já pode ser visto na liberação de recursos do BNDES para a compra de máquinas e equipamentos, na promiscuidade dos empréstimos aos Estados, muitos quebrados, na mudança da meta fiscal. A meta que não virou banda, graças à sensatez de última hora da Comissão Mista do Orçamento.

Que não restem dúvidas: Dilma e seu futuro ministro da Fazenda hão de tomar o que sobrou da casa. Não de forma sorrateira, mas do mesmo modo barulhento e desrespeitoso como o fizeram os intrusos invisíveis de Cortázar. O País haverá de passar por mais tormentas antes que a sobriedade prevaleça. A última cartada de Dilma, dure o tempo que durar, poderá até trazer-nos de volta o cenário mais cruento: aquele em que o Brasil vai ao FMI de chapéu mão. Estaria então encerrado o ciclo dilmista – a presidente já não poderia dizer, como fez em campanha, que não quebrou o País como dissera ter feito o outro, o morador discreto em quem a culpa sempre recai.

Ao ministro Levy sobrou o destino dos personagens de Casa Tomada. Despachada sua equipe, apagará as luzes, nada consigo levará. As chaves, melhor deixá-las na sarjeta. Os demolidores, afinal, não precisam das chaves.

* MONICA DE BOLLE É ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS