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Catalunha, realidade e aparência

O plebiscito acirrou ainda mais os ânimos dos dois lados

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Por Redação
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Apesar de as cenas da dura repressão policial aos partidários da independência terem ocupado o primeiro plano da cobertura jornalística, a análise do resultado do plebiscito realizado domingo na Catalunha não deixa dúvida sobre o alcance limitado da consulta a respeito da separação dessa província espanhola. O plebiscito, considerado ilegal pelo Tribunal Constitucional, acirrou ainda mais os ânimos dos dois lados – dos independentistas catalães e do governo central de Madri –, em vez de apontar um caminho para a solução do problema.

O primeiro-ministro Mariano Rajoy prometeu que agiria com firmeza para impedir a consulta, e assim o fez. Diante da suspeita, confirmada pelos fatos, de que a polícia local não cumpriria a ordem de fechar os postos de votação em escolas e repartições públicas, Rajoy enviou à Catalunha tropas da Guarda Civil para cumprir essa tarefa e ainda tentar impedir o funcionamento dos que ficaram abertos e de outros que foram improvisados pelo governo local.

Foi ao fazer isso, e diante da resistência dos independentistas, que a Guarda Civil agiu com dureza e, segundo o governo catalão e alguns políticos europeus, cometeu excessos, ao retirar eleitores de todas as idades de centros de votação e ao reprimir manifestações, com cassetetes e balas de borracha, principalmente em Barcelona. Mais de 800 pessoas ficaram feridas. Para Rajoy, os responsáveis por isso “são única e exclusivamente os que promoveram a ruptura da legalidade e da convivência”. Mas o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos pediu ao governo espanhol investigações “completas, independentes e imparciais” sobre “todos os atos de violência” ocorridos domingo.

Serenados os ânimos, e divulgado o resultado da consulta, verifica-se que o entusiasmo do governador catalão, Carles Puigdemont – “O Estado espanhol perdeu muito mais do que tinha perdido até aqui. E os cidadãos catalães ganharam muito mais do que haviam ganhado até aqui” –, pode ter mais relação com um desejo de manter a mobilização dos independentistas do que com a realidade dos fatos.

De acordo com os números oficiais, 90% dos 2,26 milhões de votos apurados foram favoráveis à independência da Catalunha. Parece muito, mas não é, pois participaram da consulta apenas 42% do total dos eleitores (5,34 milhões). Ou seja, a maior parte do corpo eleitoral (58%) não votou. Além disso, nem os 90% de votos favoráveis (2,02 milhões, ou 37,8% do total) são confiáveis, pois foi uma consulta sem a fiscalização e os usuais controles usados nesses casos. Já se sabe, por exemplo, que muitos eleitores votaram várias vezes.

O argumento de que a repressão impediu o comparecimento também não parece ter grande peso. Numa consulta feita sobre o mesmo tema, em 9 de novembro de 2014, o número de votantes foi apenas um pouco maior (2,3 milhões) do que domingo último. Esse histórico indica que não se pode dizer que a maioria dos catalães é favorável à independência, apesar da aparência transmitida pelo entusiasmo dos independentistas.

Essa é certamente uma das principais razões que explicam a firme posição adotada pelo governo central de Madri contra a independência da Catalunha. Outra é a posição também contrária da União Europeia (UE), que fez questão de lembrar o caráter ilegal do plebiscito. Uma posição perfeitamente compreensível também, se se leva em conta o perigo do exemplo de uma separação da Catalunha para vários países da UE: a própria Espanha com o problema do País Basco; a França com o da Córsega; a Bélgica, sede da UE, com a velha disputa entre valões e flamengos. Para citar apenas alguns exemplos.

É compreensível, por tudo isso, a tentativa do governador Carles Puigdemont de não radicalizar, ao declarar no dia seguinte ao plebiscito que não busca uma “separação traumática” e propõe “um novo entendimento com o Estado espanhol”. Logo se saberá o que significa esse “novo entendimento” e se ele é aceitável por Madri como ponto de partida para negociações.