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Opinião|Cobrar imposto dos mortos

Atualização:

A fúria de arrecadação governamental acelera os piores danos à sociedade. Com a CPMF e outras medidas, o contribuinte é aterrorizado pelo fisco, que ameaça subtrair o alimento da sua mesa. João Santana, sem pudor algum, profetizou que Marina Silva arrancaria o sustento dos pobres. Dilma Rousseff cumpre o vaticínio. As mentiras espalhadas na campanha da candidata oficial irritaram 70% dos brasileiros. Agora, mesmo setores alinhados ao Partido dos Trabalhadores se levantam contra as prescrições emergenciais. CUT, MST e outros movimentos resistem ao improvisado plano de estabilização, redigido sigilosamente nos gabinetes. A desfaçatez no anúncio dos projetos deixa clara a falta de respeito pela cidadania, mostra que no Planalto a vergonha foi enterrada.

Mas o que é a vergonha? Na Grécia, que deu nascimento à ética, o termo aidós significa agir contra os princípios do que é bom, belo, reto. É vergonhoso um homem forte bater em crianças, velhos ou doentes. Aristóteles liga tais atos aos impostos excessivos. “Nos envergonhamos diante dos malfeitos como se eles fossem uma desgraça para nós e para quem protegemos. Tais são as coisas devidas ao vício, como não honrar um depósito, porque é algo injusto. Ou obter lucro com abuso do pobre ou cadáver segundo o provérbio ‘roubar mesmo de um morto’, porque tal coisa se deve ao amor do ganho e mesquinharia” (Retórica, 1383b). Roubar mesmo dos mortos. A frase comove porque o trespasse é sagrado nos tempos antigos. A cobrança de taxas à beira do túmulo era vista como cruel pelas famílias. O Estado moderno chegou ao ápice da falta de vergonha para controlar a vida coletiva. A fúria na arrecadação chegou ao torpe sacrilégio.

Na Inglaterra que buscava firmar o domínio do rei, muitos juristas enunciavam que os bens oficiais seriam sagrados. Segundo Ernst Kantorowicz, na diabólica teologia jurídica “bona patrimonialia Christi et fisci comparantur” (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). Cristo e fisco são igualizados quanto à inalienabilidade e à prescrição. O “sacratissimus fiscus” torna-se alma do Estado. Como Jesus Cristo, “fiscus ubique praesens” (o fisco está em toda parte). Semelhante teologia destrói o mistério religioso, mas funciona no pavor político. Quanto mais o Estado aspira à eternidade (no limite, o Reich de mil anos...), mais exige tributos. Certa feita o rei da França cobra novos impostos. O Terceiro Estado pede o exame dos cofres. O clero, amigo do trono, profere a sentença vergonhosa: “O tesouro real é como o Santíssimo Sacramento no altar. Só o podem ver os ordenados para tal mister”.

Aí reside uma causa das revoluções democráticas no século 17 (inglesa) e 18 (a norte-americana e a francesa). O Leviatã tem fome de impostos para manter o monopólio da força física, da norma jurídica, da diplomacia. A pecúnia é um elixir que embriaga os governantes. Mas a paciência dos povos tem limites. Ela tomba quando o governo exige que se pague o que não foi fabricado, comercializado, plantado. A paciência acaba se ele quer tributos sem produção e o bolso dos contribuintes está vazio. Movimentos políticos democráticos (como os Niveladores ingleses) se levantaram contra o abuso fiscal, ligando a taxação injusta à tirania. E assim Carlos I foi deposto e logo executado, por exigir taxas não autorizadas pelo Parlamento.

Erasmo de Rotterdam escreveu o seguinte adágio : “A mortuo tributum exigere” (exigir imposto do morto). O texto serve ao Brasil de Rousseff: “De quem deseja obter dinheiro de qualquer jeito, sem indagar sobre a sua origem, se dizia que arrancava imposto do morto”. Como se escrevesse diretamente ao governo Dilma, Erasmo diz que os impostos imprudentes “são desumanos, pois os setores humildes perdem o necessário e toda uma série de taxas e contributos mordem, pedaço a pedaço, o pão do pobre”. Governos tirânicos, diz Erasmo, quando caçam impostos “ignoram medida e limite. A todo dia cogitam novas fontes de ganhos, se apegam com os dentes a todo imposto ocasional e extraordinário e nunca mais o abandonam”. Só faltou ao pensador profetizar o nome: CPMF.

Um governante é ilegítimo por defeito do seu título se fraudou a eleição ou deu um golpe de Estado. Outra fonte de ilegitimidade é o péssimo exercício do cargo, se desobedece às leis e impõe cargas tributárias excessivas e injustas. Pedir as contas do governo, antes de aceitar novos impostos, é coisa de golpistas? Não, senhora presidente! Os movimentos sociais estão irritados com as medidas anunciadas. Reinaldo Gonçalves, economista da esquerda, em entrevista ao site IHU (Unisinos) propõe o impedimento de Dilma “por desempenho medíocre, conduta grotesca e déficit cognitivo”. O acadêmico pede “investigação, indiciamento, julgamento, condenação e prisão de Lula – condição para a reconstrução das forças políticas de esquerda.”. Para ele, “Dilma é figurante supérfluo, enquanto Lula é protagonista no drama do desenvolvimento às avessas do Brasil”.

As falas dos que apoiam o governo, repetem de modo grotesco as técnicas de João Santana. Sem nomear grupos ou pessoas, recurso tíbio usual, José Guimarães (PT-CE) parola: “O discurso de que o governo não está fazendo sua parte é dos portadores do caos, daqueles que querem sempre ganhar, e não ajudar o País a superar as dificuldades”. Tais frases abarcam o povo todo, e ninguém. É clara a intimidação do governista ao empresário (mas também ao trabalhador) “que só sabe falar: imposto, imposto e imposto, e não quer ajudar; quer só acumular, sem distribuir pelo País”. Sublime! Talvez o mensalão, o petrolão e outras técnicas – como esconder dólares nas peças íntimas de assessores e alegar “razão de Estado” – bem distribuam socialmente as riquezas!

Presidente Dilma e áulicos: lembrem o vocábulo grego – aidós – que designa a vergonha: não nos apresentem a conta da sua desídia. Peçam a sua.

* ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE 'RAZÃO DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO' (PERSPECTIVA)