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Contrarreforma na Previdência (II)

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Por FABIO GIAMBIAGI É ECONOMISTA E AUTOR DE REFORMA DA PREVIDÊNCIA ED. CAMPUS)
4 min de leitura

Dou continuidade, com o texto de hoje, ao artigo da semana passada, no qual abordei o desafio previdenciário. Naquele quis mostrar as tendências com que o País se defronta e apontar para o desleixo com que se tem abordado o fenômeno. O relato da incúria nacional, porém, não acaba nas questões já tratadas.Sabia-se há tempos que no Brasil as famílias têm cada vez menos filhos e que a sociedade está envelhecendo. Com base nessas premissas, a revisão populacional do IBGE de 2008 projetou a população até 2050, ano a ano, incluindo a previsão para 2010. Pouco depois foi possível cotejar previsão e realidade, à luz dos dados do Censo de 2010. E a realidade acabou confirmando aquele cenário, mas em escala mais intensa: o Censo informou-nos que as famílias estão tendo menos filhos - porém foi além e disse que estão tendo ainda menos filhos do que se imaginava. E ele nos informou que as pessoas estão vivendo mais - porém também neste caso foi além e disse que estão vivendo mais do que se supunha.A comparação dos resultados observados em 2010 do Censo daquele ano com o cenário populacional para 2010 previsto na revisão de 2008 indica que a população total se revelou muito próxima da prevista - apenas 1% inferior à projeção - e o grupo de 15 a 59 anos foi praticamente o mesmo que na projeção. O mais importante, contudo, foi o que aconteceu com os grupos etários extremos. No grupo de crianças e adolescentes, a população efetivamente observada no Censo de 2010 entre zero e 14 anos revelou-se 7% inferior à prevista na projeção feita em 2008 para aquele ano. Já a população com 60 anos e mais no Censo de 2010 foi 7% maior do que a projeção. Os efeitos de longo prazo, se o País não se preparar para essa realidade, serão dramáticos: haverá poucas crianças e poucos jovens - menos ainda do que imaginávamos; e haverá muitos idosos - que viverão mais do que se pensava. Trata-se de um desafio maiúsculo.Por um lado, isso é ótimo. Quem não gosta de poder viver mais? Por outro, mais idosos com menos indivíduos trabalhando representarão uma combinação pesada para a geração que vier a sustentar as nossas aposentadorias. Que as pessoas envelheçam e as sociedades tenham de se adaptar a isso é parte da vida. Que os nossos filhos tenham de pagar mais para financiar uma legião de aposentados que teremos nos aposentando precocemente, todavia, é um ato de egoísmo para com as gerações seguintes.Nada disso é novidade - mas todos fingem que o problema não existe. O governo federal optou anos a fio por surfar na popularidade fácil, em vez de arregaçar as mangas e se dedicar à arte do convencimento, mostrando a importância de aprovar uma reforma previdenciária. O mercado tapou os olhos para aqueles números a fim de ganhar rios de dinheiro nos anos de euforia. E os diversos grupos sociais curtiram o período na base do "vou muito bem, obrigado", desde os mais pobres, que ganharam Bolsa-Família, até os mais afortunados, que aproveitamos os anos de dólar barato para frequentar com assiduidade o exterior.À luz dessa situação, o virtual fim do fator previdenciário, de que o governo estaria cogitando para depois das eleições, tem um conflito insanável com a lógica. De fato, a uma situação já complexa por questões demográficas o fim do fator previdenciário adicionará um problema maior ainda: a cada aposentado que vier a falecer, nós o estaremos substituindo no sistema por outro que, em média, vai ter um plus de remuneração de 25%. A conta a ser paga pelos nossos filhos vai aumentar. O argumento de que "50 anos depois o sistema vai estar ajustado" passa por cima do fato de que a despesa do INSS em 2020 ou 2030 tende a ser maior do que com as regras atuais. Isto é, não se trata de uma reforma, mas de uma contrarreforma.Quando na Argentina mudaram as regras de aposentadoria nos anos 1990, o então ministro da Economia, Domingo Cavallo, também dizia que 50 anos depois as contas melhorariam. Mas quando veio a crise a única coisa que interessava ao mercado era o resultado primário mês e mês - e esse, no Brasil, com a proposta do governo, e tudo o mais constante, deve piorar.Há fatos na vida de uma nação cuja dimensão é óbvia - dez anos depois. Hoje sabemos todos que a Lei de Informática foi um desastre para o desenvolvimento do País, mas nos anos 80 era extremamente popular. Com a proposta em discussão pode acabar acontecendo a mesma coisa: o fim do fator previdenciário poderá até ser aprovado por unanimidade, mas no futuro vamo-nos arrepender amargamente.A ideia de combinar idade de aposentadoria e tempo de contribuição, definindo uma soma mínima, é engenhosa e evitaria valores muito baixos com o fator previdenciário. Ela merece ser explorada (na direção de avançar para uma regra mais dura, como 95/100), mas não há uma única razão técnica para que a proposta tenha de ser vinculada ao que, na prática, seria a eliminação do fator.De fato, a nova regra poderia conviver perfeitamente com o fator previdenciário, como uma exigência complementar à do tempo contributivo. A racionalidade da exigência de que a soma do tempo contributivo e da idade de aposentadoria obedeça a um valor mínimo não combina com o populismo do fim do fator. Se o problema é o baixo valor com sua aplicação quando as pessoas se aposentam cedo, o correto é fazê-las trabalhar por mais tempo. Na prática, o que o fim do fator vai fazer é promover um aumento das futuras aposentadorias, agravando o problema que temos em perspectiva em razão do envelhecimento da população.Foi por causa desse tipo de atitudes que a Grécia se converteu no que é hoje. Se daqui a dez ou 20 anos o resto do mundo julgar que o Brasil agiu como um país irresponsável, não poderemos reclamar.