Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Copa - dinheiro, soberania e catarse

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Por Gaudêncio Torquato

O maior espetáculo da Terra, a Copa do Mundo de 2014 é uma miragem no horizonte de 957 dias que faltam para sua abertura, mas as escaramuças que está causando ameaçam deixar mortos e feridos bem antes que os exércitos de 32 países entrem nas arenas de 12 estádios, uns em fase inicial de construção, outros em reforma. A tensão que o evento provoca com tanta antecedência se deve não só ao fato de que a disputa terá a maior audiência acumulativa de todos os tempos - 26 bilhões de espectadores em 214 nações, com transmissão em 376 canais -, mas por ser o futebol a paixão brasileira por excelência. Como tal, é motor das emoções, arrastando multidões às praças esportivas, abrindo clamor e indignação, gerando contrariedades, promovendo, enfim, a explosão coletiva. O objeto dos conflitos, por enquanto, não é a bola, cujos peso e formato certamente ganharão um capítulo novelesco mais adiante, mas as normas que as autoridades organizaram para determinar como será realizada a Copa no Brasil. Como o dono da flauta dá o tom, a Federação Internacional de Futebol (Fifa), entidade de direito privado, proprietária exclusiva do certame, impõe regras, fazendo do Projeto de Lei 2.330, chamado de Lei Geral da Copa, a expressão de sua vontade.O imbróglio se forma quando o tom que a Fifa quer dar à flauta soa estranho nos arranjos orquestrados pela banda social. A polifonia se estabelece. E para coroar a liturgia cívica que embala corações no anelo coletivo, emergem polêmicas intermináveis, sob a égide do conceito que abriga o arsenal da guerra: soberania. Traduzindo: aprovada a Lei Geral da Copa nos termos encaminhados pelo Executivo ao Congresso, a soberania nacional estaria conspurcada. O futebol, como é sabido, canalizador da avalanche catártica do País, ingressa profundamente no hemisfério emotivo, deixando estreita margem para uma análise mais racional. Sob essa hipótese, é complexa a tarefa de distinguir os polos (certo/errado, ético/aético, justo/injusto) que balizam a organização da Copa do Mundo em nosso país. É razoável começar o exercício pelo campo que abre a polêmica, a soberania. Se soberania, segundo Rousseau, é o exercício da vontade geral, "que não pode ser alienada ou dividida e jamais concentrada nas mãos de um homem ou de um grupo", é evidente que a Fifa não tem razão para impor sua visão particular sobre o anseio coletivo. A soberania de uma nação exprime o poder de uma autoridade superior, não devendo este ser limitado por nenhum outro poder. Essa é a lição do Direito. É evidente que os organizadores da Copa sabem disso, até porque se defrontam, a cada quatro anos, com argumentos contrários a suas pretensões.A Fifa, como empresa privada, objetiva auferir lucro, cooptando governos dos países-sede do evento, que se dobram às exigências por saberem que o futebol é um dos ímãs mais poderosos de que a política dispõe para atrair as massas. A catarse produzida pelos espetáculos acabará compensando os governantes com expressivos resultados eleitorais. É evidente que o negócio privado quer apitar todo o jogo: escolher parceiros, definir projetos, contratar consultores e fornecedores, estabelecer sistemas de promoção e vendas para comercializar marcas, símbolos, produtos e serviços. Até aí, tudo bem. É compreensível que os países, quando se candidatam a sediar uma Copa, procurem oferecer aos donos do empreendimento uma carta de compromissos e vantagens que lhes garantam elementos de diferenciação em relação aos demais competidores. Foi assim que o Brasil ganhou a condição de sediar o próximo Mundial, a ser realizado 64 anos após a memorável Copa de 50. Quando as intenções entram, porém, no plano das ações, o caldo entorna. E é nessa encruzilhada que se encontram os parceiros do campeonato. A Lei da Copa, como se apresenta, está eivada de aberrações jurídicas, de afrontas aos direitos dos consumidores. Pior, joga no lixo disposições integradas aos costumes sociais.A questão da extinção de meia-entrada para idosos e estudantes já estaria equacionada com a decisão do governo de fazer valer a atual regra. Mas situações absurdas persistem, a começar pela extravagante ideia de que títulos como Copa do Mundo, Mundial de Futebol, Brasil 2014 só poderão ser usados sob licença da Fifa. Torcedor que decida enfeitar o boné com essas expressões poderá ser condenado à prisão ou multa. Se uma pessoa pintar o muro de sua casa com o mascote da Copa, será ameaçada de entrar em cana. Ou se comprar algo - ingresso, produto ou serviço - pela internet, por exemplo, não poderá ser ressarcido caso desista da aquisição. Comprou, pagou, levou, mesmo com o pacote deteriorado. Não há como deixar de observar que o bom senso passou longe da confecção do índex de vedações. Ao moldar a lei à sua vontade, a Fifa invade a seara da cultura popular, apropriando-se de sua linguagem, reescrevendo tradições e fazendo vista grossa ao Estatuto do Torcedor, ou seja, à Lei 10.671.Não se discute o domínio sobre direitos de comercialização de produtos e serviços pela cadeia de vendas e difusão de imagens pela mídia. Inaceitável é a suspensão da legislação brasileira para atender a objetivos mercadológicos da organizadora, incluindo a revogação da proibição de bebida alcoólica em estádios e a venda exclusiva da marca patrocinadora do evento. O que poderá acontecer caso o Congresso decida conformar as regras ao gosto social? A realização da Copa em outro país seria inexequível, ante o apertado calendário de que se dispõe, pelo conflito que a decisão proporcionaria. Resta aplicar critérios plausíveis, justos e regrados pelo máximo de consenso entre as partes. Por último, deixar que a galera das gerais se manifeste livremente sobre a disputa, usando inclusive a verve ferina para reclamar que falta quase tudo para fazermos uma boa Copa, sobretudo uma boa seleção de futebol. 

JORNALISTA, É PROFESSOR, TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO