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Opinião|Corporativismo e censura

Foto do author Carlos Alberto Di Franco
Atualização:

Três repórteres e outros dois profissionais do jornal Gazeta do Povo, do Paraná, foram processados por magistrados e promotores do Estado após terem publicado reportagem especial sobre os vencimentos recebidos por juízes e representantes do Ministério Público neste ano. O jornal mostrou os expedientes por eles utilizados para ganhar mais do que o teto salarial fixado pela Constituição para o funcionalismo público. Os profissionais do jornal, de 97 anos de existência, foram alvo de pelo menos 48 processos judiciais movidos de abril até agora em várias cidades do Paraná.

As petições foram praticamente idênticas e seus signatários alegaram que foram “ridicularizados” e “ofendidos”. “Colegas de todo o Estado passaram a experimentar algum tipo de dissabor ou constrangimento, como a indagação de populares sobre supersalários”, afirmaram os diretores da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar).

Os processos reivindicam R$ 1,3 milhão em indenizações e foram abertos em Juizados Especiais, que aceitam causas no valor de até 40 salários mínimos e obrigaram os jornalistas a comparecer a todas as audiências de conciliação, sob pena de serem condenados à revelia. Isso já os levou a percorrer milhares de quilômetros e os obrigou a perder muitos dias de trabalho por semana.

A forma de intimidação de jornalistas e do trabalho da imprensa adotada pelos juízes paranaenses não é nova. Há oito anos a Igreja Universal do Reino de Deus estimulou dezenas de fiéis a abrir processos, em suas respectivas cidades, contra uma repórter da Folha de S.Paulo que publicou reportagem revelando o patrimônio da organização e questões societárias de gráficas, agências de turismo, imobiliárias, emissoras de rádio e empresas de táxi aéreo ligadas a seus bispos. As petições tinham os mesmos textos e os fiéis – como no caso dos magistrados paranaenses – se diziam “ofendidos”. Trata-se de tentativa corporativa de censura. Antidemocrática e inconstitucional.

Mas nem todos vão por aí. Felizmente. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu a liberdade de imprensa durante o 11.º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em São Paulo. Ao comentar a série de ações propostas pelos juízes paranaenses contra jornalistas da Gazeta do Povo, a futura presidente do STF declarou que o “dever da imprensa não pode ser cerceado de maneira nenhuma”. Para Cármen Lúcia, quem assume cargo público tem uma esfera de privacidade menor. Dizer quanto o juiz ganha não está no espaço da privacidade. É o cidadão que paga. Ele tem o direito de saber. Sobre o episódio, sublinhou ainda que os juízes envolvidos, nesse caso, “são parte”, não mais magistrados.

Tenho grande respeito pelo Poder Judiciário, que é, sem dúvida, um dos pilares da democracia. Mas quando integrantes do Judiciário, independentemente de suas motivações subjetivas, começam a trafegar pelos desvios do corporativismo, as instituições entram em perigosa turbulência. Oportuna, portanto, a inequívoca tomada de posição da ministra Cármen Lúcia.

Relembro, ainda, declarações semelhantes do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto. Suas palavras não deixam margem para interpretações ambíguas: “Onde for possível a censura prévia se esgueirar, se manifestar, mesmo que procedente do Poder Judiciário, não há plenitude de liberdade de imprensa”. Para o ex-presidente do STF, o confronto de interesses entre o livre exercício do jornalismo e o direito à privacidade “inevitavelmente”se dará. Carlos Ayres Britto garante, porém, que a nossa Carta Magna estabelece a prioridade à livre expressão ante o direito à privacidade. “A liberdade de imprensa ocupa, na Constituição, este pedestal de irmã siamesa da democracia”.

O interesse público está acima do interesse privado. O direito à informação, pré-requisito da democracia, reclama o dever de informar. E os meios de comunicação demandam liberdade e independência para cumprir o seu dever de informar. A privacidade dos homens públicos é relativa. O cargo público traz consigo a incontornável necessidade de transparência. “O poder”, dizia Rui Barbosa no seu belíssimo texto A Imprensa e o Dever da Verdade, “não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública até à sua vida particular deram paredes de vidro”.

Um abismo separa os ideais de Rui Barbosa dos usos e costumes da vida pública brasileira. Informação jornalística relevante é, frequentemente, considerada um abuso ou um despropósito. A informação não é um enfeite. É o núcleo da missão da imprensa e a base da democracia. Homens públicos invocam o direito à privacidade como forma de fugir da investigação da mídia. Entendo que o direito à privacidade não é intocável. Pode cessar quando a ação praticada tem transcendência pública. É o caso dos servidores públicos, dos governantes ou candidatos a cargos públicos. Os aspectos da vida privada que possam afetar o interesse público não devem ser omitidos em nome do direito à privacidade.

Não pode existir uma separação esquizofrênica entre vida privada e vida pública. Clareza e transparência, isso é o mínimo que se espera dos homens públicos. Salário de servidor não é assunto privado. É informação de interesse público. Relevante para a sociedade. O leitor tem o direito de saber.

A imprensa deve fazer o contraponto. Sempre. A ministra Rosa Weber, do STF, deferiu na quinta-feira, 30 de junho, a liminar do jornal para que as ações contra o veículo sejam suspensas. Os juízes paranaenses estão equivocados. A Gazeta do Povo fez o que devia. Cumpriu o seu papel.

* CARLOS ALBERTO DI FRANCO É JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@IICS.ORG.BR