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Cristina de volta às Malvinas

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Por Redação
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A assinatura de um decreto autorizando a liberação de documentos mantidos em sigilo durante três décadas sobre a "aventura militar", como diz um relatório, da ditadura argentina no Arquipélago das Malvinas, em 1982, foi o pretexto da vez para a presidente Cristina Kirchner reencenar o espetáculo anual da afirmação dos pretensos direitos nacionais sobre a inóspita coleção de 778 ilhotas, no extremo sul do Atlântico, a 550 quilômetros da costa do vizinho país. Os britânicos desembarcaram pela primeira vez nesse fim de mundo em 1690, dando-lhe o nome de Falklands. Vivem ali 3 mil kelpers, como são conhecidos os ilhéus inabalavelmente leais à Coroa. A maioria se concentra na capital, Port Stanley.Pelo menos desde 1833, Buenos Aires reivindica a soberania sobre o lugar. É uma demanda enraizada como nenhuma outra na psique argentina. Há 30 anos, a população se alinhou com a mais feroz tirania da história do país, quando os generais pretenderam tomar as Malvinas pela força. As tropas argentinas, despreparadas e desprotegidas do frio glacial que as esperava, foram derrotadas pelas forças britânicas despachadas para a região pela primeira-ministra Margaret Thatcher, cuja popularidade foi às nuvens. Cerca de 650 militares argentinos perderam a vida, ante 255 britânicos. Com a derrota, caiu a ditadura. Em 2003, o então presidente Néstor Kirchner levou a querela a um comitê da ONU. Quando, sete anos depois, os britânicos começaram a buscar petróleo na área, a Casa Rosada reagiu furiosamente.Na terça-feira, tendo como pano de fundo um amplo mapa das Malvinas pintado de azul e branco, as cores nacionais, Cristina anunciou que denunciará o Reino Unido ao Conselho de Segurança por "militarizar" o Atlântico Sul. Isso porque, na semana passada, Londres anunciou o envio do destróier HMS Dauntless para o arquipélago, levando a bordo o príncipe herdeiro William, para um período de seis semanas de treinamento militar. "Eles enviaram um moderníssimo destróier acompanhado do herdeiro real, que gostaríamos de ver em roupas civis", reclamou a presidente. Na realidade, não se trata nem de uma "provocação", muito menos de um "grave risco para a segurança internacional", como afirmou.O Dauntless simplesmente substitui outra belonave britânica na região, em um rodízio de rotina. Desde a invasão argentina de abril de 1982, Londres jamais deixou de ter presença naval no arquipélago. E o treinamento de William tampouco tem algo de extraordinário. Ele é piloto de helicóptero, especializado em busca e salvamento, e acumula horas de voo aonde for adequado. De toda maneira, diferentemente do que se especulava, a presidente não revogou a autorização, que data de 1999, para voos regulares entre Rio Gallegos, na Patagônia, e Port Stanley. E teve o bom senso de garantir que manterá a disputa com a Grã-Bretanha pelas ilhas no estrito terreno diplomático. "Que ninguém espere de nós gestos fora daí", tranquilizou. "Sofremos demais com a violência em nosso país. Jogos de armas não nos atraem."Mas a sua intenção é manter o arquipélago sob pressão, para forçar a retomada das discussões sobre o problema. Há poucos meses, a Argentina obteve do Brasil, Uruguai e Chile o compromisso de manter os seus portos fechados a embarcações de bandeira britânica com o peculiar brasão das Falklands, que inclui um carneiro, um barco à vela e o mote Desire the Right. Vários países do Caribe fizeram o mesmo. Para variar, o caudilho venezuelano Hugo Chávez apressou-se a prometer ajuda a Argentina, na eventualidade de um conflito militar - que, evidentemente, não está nos planos de ninguém. Do lado britânico, a questão é simples. "Os habitantes das ilhas são livres para determinar o seu próprio futuro e, a menos que eles queiram, não haverá negociações com a Argentina sobre soberania." Neste ponto, governo e oposição convergem. A julgar pelas manifestações dos kelpers, como acaba de relatar uma repórter do Clarín, de Buenos Aires, enviada às Malvinas, a coisa mais suave que têm a dizer aos argentinos é "Deixem-nos em paz".