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De guerras cambiais a guerras comerciais

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Por Vera Thorstensen
4 min de leitura

A reunião de outubro do FMI, que pretendia dar uma solução à questão das guerras cambiais, acabou em impasse. Tudo foi adiado para a próxima reunião do G-20, em novembro. O problema é que, num mundo de taxas de câmbio flexíveis, quando um peso pesado, como os EUA, cuja moeda é a base do comércio mundial, desvaloriza sua moeda, e outro peso pesado, como a China, mantém sua desvalorização em relação ao dólar por mais de dois anos, obtendo expressivos superávits na balança comercial e acumulando reservas, a questão não é só entre dois países, mas de interesse de todos. O problema não se restringe mais a guerras cambiais, mas se transforma em guerras comerciais, porque países com moedas desvalorizadas estão praticando subsídio em suas exportações e criando barreira tarifária nas suas importações.Existem várias estimativas de que o câmbio dos EUA e da China está desvalorizado. A consequência é que esses países estão criando distorções para o comércio internacional e tornando inúteis os instrumentos negociados no âmbito do Gatt e da OMC nos últimos 60 anos, uma vez que fluxos de comércio e direitos corretivos não podem ser reajustados para anular as distorções.Enquanto o FMI discute possíveis soluções para a guerra cambial entre EUA e China, que já se transformou em guerrilhas cambiais entre inúmeros países, os setores afetados perguntam se existem instrumentos na OMC que podem ser usados para corrigir as distorções ao comércio. A resposta é sim! Analisemos o caso da China: O artigo XV do Gatt estabelece regras sobre arranjos cambiais. O parágrafo XV.4 determina que "as partes contratantes não deverão, por meio de ação sobre o câmbio, frustrar o propósito dos dispositivos do Gatt nem, por ação de comércio, o propósito dos dispositivos dos artigos do Acordo do FMI". Até o momento, nenhum membro da OMC se dispôs a questionar outro membro sobre seus arranjos cambiais. Por que não fazê-lo agora? O Acordo sobre Valoração Aduaneira estabelece regras para a valoração de bens baseadas no valor da sua transação. Mas permite ajustes no preço em vários casos. O artigo 9 especifica que, quando a conversão da moeda é necessária para a determinação do valor aduaneiro, a taxa de câmbio a ser usada deve ser a devidamente publicada pelas autoridades competentes do país da importação e deve refletir, o mais efetivamente possível, o valor corrente de tal moeda em transações comerciais em termos da moeda do país de importação. Ora, se o próprio FMI afirma que a moeda chinesa está desvalorizada, por que outro membro não pode ajustar o valor de tais importações? O Acordo de Subsídios estabelece regras para subsídios que são considerados proibidos ou acionáveis. São considerados proibidos os subsídios vinculados ao desempenho da exportação (artigos 3 e 4). O desafio para os advogados é como enquadrar a desvalorização cambial na definição de subsídio, que menciona contribuição financeira do governo que seja vinculada somente à exportação, e não a toda a economia. Outra opção é considerar a desvalorização cambial como subsídio acionável. O acordo estabelece que nenhum membro deve causar, por meio de subsídio, efeito adverso aos interesses de outro membro, isto é, dano à indústria local, ou anulação de benefício, especialmente de concessões tarifárias (artigos 5 e 6). O desafio é como enquadrar a desvalorização cambial na definição de subsídio, que exige que este seja específico a um grupo de indústrias. Mas o que dizer de uma empresa chinesa 100 % exportadora? O artigo XXIII do Gatt estabelece que, se um membro considerar que algum benefício a ele devido pelo Acordo do Gatt esteja sendo anulado ou prejudicado, ou que qualquer objetivo do Gatt esteja sendo impedido, tal membro pode levar o caso à Solução de Controvérsias da OMC. Um caso pode ser aberto pela falha de um membro em cumprir as obrigações previstas, ou pela aplicação de qualquer medida que esteja anulando ou prejudicando os benefícios esperados por outro. Essas duas hipóteses são conhecidas como disputa com violação ou disputa sem violação. A política cambial chinesa certamente poderá ser enquadrada como um caso de não violação, diante dos sérios prejuízos causados ao comércio internacional. O Protocolo de Acessão da China à OMC também prevê a utilização do mecanismo de salvaguarda transitória. Tal instrumento só foi utilizado quatro vezes - Índia (2), Turquia e EUA - diante da postura de confronto da China. No entanto, é um instrumento que faz parte da OMC e foi aceito por todos os seus membros, inclusive a China. Alternativa a ser explorada, no âmbito da legislação brasileira, é o Decreto 4.732, de 10/6/2003, que define as funções da Camex. Dentre elas, compete à Camex (artigo 2-XIV) fixar as alíquotas do Imposto de Importação, atendidas as condições estabelecidas na Lei 3.244, de 14/8/1957. Ora, essa lei, assinada pelo presidente Kubitschek, determina que a alíquota de um produto poderá ser alterada dentro dos limites máximos do respectivo capítulo (artigo 3-e), quando relativa a produto de "país que desvalorizar sua moeda ou conceder subsídio à exportação de forma a frustrar os objetivos da tarifa". Por que não utilizá-lo agora?A questão cambial não pode ser apenas discutida nas reuniões a portas fechadas do FMI, mas deve ser analisada na própria OMC, uma vez que impacta diretamente o comércio internacional. Ou os efeitos dos desequilíbrios do câmbio são equacionados na OMC, ou as guerras cambiais, convertidas em guerras comerciais, terminarão por abalar o sistema multilateral do comércio. É tempo de a OMC iniciar discussões sobre o impacto do câmbio no comércio, no âmbito de um novo acordo multilateral. Será que a Rodada Doha pode acabar sem ele?COORDENADORA DO CENTRO DO COMÉRCIO GLOBAL E DO INVESTIMENTO DA EESP-FGV