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De Moncloa à Porta do Sol

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Por Redação
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A abdicação do rei Juan Carlos, de 76 anos, em favor de seu filho Felipe, príncipe de Astúrias, abre para a Espanha a perspectiva de um salto político e cultural comparável ao que experimentou desde que, há quase quatro décadas, ele foi guindado ao Palácio de La Zarzuela, a residência oficial dos soberanos espanhóis. É fato que o chefe de Estado não conduziu diretamente a vertiginosa modernização do país, sem paralelo no mundo democrático nesse período.Mas foi sob a sua égide que a Espanha deixou de ser uma nação pobre, retrógrada e tutelada - herança da guerra civil que a estilhaçou entre 1936 e 1939 e dos 36 anos da ditadura de Franco -, transformando-se numa nação aberta, dinâmica e vibrante como poucas. Coroado depois da morte do Caudillo, em 1975, o taciturno Juan Carlos se reinventou no trono, revelando a insuspeitada clarividência que o levou a patrocinar, daí a dois anos, a modelar transição para a democracia consubstanciada nos Pactos de Moncloa, em alusão ao palácio onde, sob a liderança do então primeiro-ministro Adolfo Suárez, forças antagônicas concordaram em erguer um futuro comum.Só em 1981, porém, ele fez por merecer a legitimidade - e a gratidão - da nova Espanha, ao decepar uma tentativa de golpe militar franquista, cujo momento mais dramático foi o ataque armado às Cortes, o Parlamento nacional, por um grupo de oficiais e guardas-civis. Juan Carlos saiu daqueles dias de medo e de tensão como um estadista. Consolidada a democracia, Madri foi admitida na União Europeia em expansão. Com isso, a economia, o nível de renda, a qualidade de vida e até a paisagem espanhola se tornaram irreconhecíveis.Tão transfigurador como tinha sido o take-off do país seria, nos anos recentes, o retrocesso provocado pelo colapso de Wall Street, em 2008, e a crise do euro, que se abateu com especial virulência sobre a Europa mediterrânea. O pouco que restava dos feitos de Juan Carlos na memória coletiva já não o pouparia do repúdio às instituições de governo que se apossou do país, para o qual a realeza contribuiu. Primeiro, com a revelação de que o genro do rei desviou milhões de fundos públicos. Depois, ao se descobrir que o sogro caçava elefantes na África, alheio aos 25% de súditos desempregados - o dobro disso na população jovem.O grau de confiança na monarquia é hoje o menor da história: 3,7 numa escala de 0 a 10. Na Grã-Bretanha, para ter ideia, 75% da população espera que o príncipe George use um dia a coroa de sua avó Elizabeth II. Na política, o bloco Esquerda Unida e o partido Podemos, nascido dos Indignados que ocuparam a Porta do Sol, no centro de Madri, obtiveram 18% dos votos nacionais na recente eleição para o Parlamento Europeu. Já o conservador Partido Popular (no governo) e o Socialista não somaram 50%, o pior resultado para os dois desde 1980. Anunciada a abdicação, milhares de espanhóis se manifestaram pela convocação de um referendo sobre monarquia ou república.É pouco provável que o Parlamento encampe a ideia. Nem os dirigentes socialistas simpatizam com uma eventual mudança de regime, a partir da qual a chefia de Estado também ficaria em mãos de um plebeu. No entanto, a consulta popular é uma excelente oportunidade para a revitalização da Espanha, para os próprios espanhóis. Já não bastasse a crise e a ameaça do separatismo catalão - que parece sobrepor-se ao prevalecente autonomismo subsidiado por Madri -, o espírito do tempo no país demanda para a sobrevivência da Casa Real a legitimação pela urna e não apenas pelo berço.As monarquias se legitimam em nome da tradição, do passado. A espanhola se credenciaria numa perspectiva de futuro. O referendo não seria um ato de lesa-majestade, mas um salva-vidas para as combalidas instituições nacionais. Juan Carlos, o rei, foi o fiador de Moncloa, o pacto pela transição democrática. Se houver a consulta e o regime prevalecer - graças à popularidade de Felipe, o príncipe esportista casado com uma ex-repórter e apresentadora de TV -, ele simbolizará a reforma democrática exigida pela Porta do Sol.