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Opinião|Democracia encurralada

Atualização:

Acaba de sair o livro Além da Anistia, Aquém da Verdade: o Percurso da Comissão Nacional da Verdade, de Eliézer Rizzo de Oliveira (Editora Prismas, Curitiba, 2015, 347 páginas). Um excelente trabalho sobre tema tão espinhoso. Texto limpo e agradável de ler e o mérito do primeiro estudo que examina com o olhar abrangente, analítico e crítico do pesquisador experiente o percurso completo da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), desde a aprovação da lei que a instituiu, seu funcionamento e as polêmicas que suscitou até o relatório final.

O objetivo geral da comissão – que se desdobra no estudo de Eliézer – é encontrar ou construir, como o autor admite, ou ao menos delinear os contornos da verdade histórica – “uma narrativa sempre tensa de possibilidades de interpretação de verdades” – do ciclo de governos autoritários do País, com o foco no período do regime militar, entre 1964 e 1985, e seu corolário de perseguições e violações dos direitos humanos.

Reconheça-se que é dificílimo abordar tema tão sensível, sobretudo na turbulência da atual crise política e econômica, e pesado clima de frustrações, incertezas e ânimos exaltados. Também porque se trata de história recente marcada pelo duro embate político que degenerou na guerra interna, e sabemos que não há como revê-la sem revirar as lembranças do velho baú e seus tristes episódios de dor e sofrimento individual e coletivo, que se recusam a tornar-se passado.

Eliézer Rizzo tem credenciais de sobra para se posicionar com clareza nesse debate e é um dos raros intelectuais com o perfil ajustado para isso. Professor titular de Ciência Política e um dos fundadores do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp e da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, é um dos mais renomados pesquisadores em segurança e defesa nacional e publicou estudos fundamentais nessa área, dentre eles o de 2005 em que examina o processo de criação do Ministério da Defesa em substituição aos ministérios militares.

Mas, afinal, qual é a motivação singular do autor e, mais propriamente, sua tese central na análise dessa trama de eventos e suas diversas narrativas? Essencialmente, demonstrar que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) não cumpriu integralmente os objetivos da sua criação, sobretudo porque não atuou em conformidade com a inspiração e os propósitos da lei que a instituiu, ao decidir por conta própria investigar exclusivamente as ações repressivas do regime militar e desconsiderar as violações dos direitos humanos praticadas pelas organizações da esquerda revolucionária. Para ele – e esse é o fio condutor do estudo –, ao optar arbitrariamente por esse caminho a comissão cometeu grave equívoco em seu ponto de partida, deixando às escuras parte relevante da nossa memória histórica. Como diz, “ao escolher as vítimas de um lado, a CNV decretou ao esquecimento as vítimas do outro lado, como se fossem um nada”.

Segundo ele, além de dirigir seu foco de investigação unicamente para a atuação das Forças Armadas na época, a CNV extrapolou seu papel e resvalou para o revanchismo ao proclamar-se de fato e indevidamente como tribunal da justiça criminal, ou se investindo de atribuições que são exclusivas dos Poderes da República, como, por exemplo, ao inquirir por todos os meios e expor à execração pública as instituições militares, delas exigindo, além de documentos e relatórios circunstanciados sobre sua participação direta nos citados eventos, o pedido de perdão à Nação. Ainda na esteira dos equívocos, a CNV fez tabula rasa ou interpretação enviesada do que fora conquistado pela sociedade civil desarmada nas memoráveis jornadas de lutas em prol da redemocratização do País (a anistia, as eleições diretas e a Constituinte, dentre outras), desde meados dos anos 1970 até a Constituição de 1988. Como se essa história se iniciasse em 2013, tratou desde logo de contornar e, no limite, defender a alteração e até a revogação da Lei da Anistia de 1979, que foi encampada pela Constituição federal e reiterada em sua plenitude pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, que a julgou abrangente, justa e favorável a todos, e é acertadamente considerada por Eliézer como “uma pedra angular da democracia brasileira”.

Daí por que, aponta, a consequência mais grave dessa postura é que a comissão produziu resultados insatisfatórios, pois se ela logrou avanços na elucidação e na ampla divulgação dos graves episódios de violação dos direitos humanos de presos e perseguidos políticos durante os governos militares, deixou às escuras os que estão relacionados aos atos de violência dos seus opositores que adotaram o caminho da luta armada. Com isso, além de contribuir para conturbar ainda mais o já azedado ambiente político do País, apresentou ao final dos trabalhos um relatório sem a verdade completa sobre seu objeto de investigação.

É possível que lancem dúvidas quanto à legitimidade e à isenção do autor para avaliar tão duramente a atuação da CNV e ele corre o risco de ser atacado até mesmo com vitupérios pelos representantes e simpatizantes da esquerda revolucionária de ontem e de hoje, que não consideram ilegítimo pegar em armas como forma de luta política nem reconhecem, portanto, direitos humanos iguais para suas eventuais vítimas. No limite, podem até acusá-lo de direitista ou porta-voz dos militares. Em contrapartida, ele pode tornar-se também alvo de duros ataques da parte dos representantes e simpatizantes da extrema direita militar e civil, igualmente adeptos do uso da violência, que podem acusá-lo de cúmplice da esquerda radical quando explicita sem tergiversar e com veemência seu repúdio às prisões ilegais, à tortura e aos assassinatos cometidos nos porões dos aparelhos de repressão sob o comando das Forças Armadas – envolvimento que lhes manchou a farda, como afirma – durante os anos de chumbo da ditadura.

Como sempre, a democracia encurralada pelos que por ela têm desprezo.

Acaba de sair o livro Além da Anistia, Aquém da Verdade: o Percurso da Comissão Nacional da Verdade, de Eliézer Rizzo de Oliveira (Editora Prismas, Curitiba, 2015, 347 páginas). Um excelente trabalho sobre tema tão espinhoso. Texto limpo e agradável de ler e o mérito do primeiro estudo que examina com o olhar abrangente, analítico e crítico do pesquisador experiente o percurso completo da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), desde a aprovação da lei que a instituiu, seu funcionamento e as polêmicas que suscitou até o relatório final.

O objetivo geral da comissão – que se desdobra no estudo de Eliézer – é encontrar ou construir, como o autor admite, ou ao menos delinear os contornos da verdade histórica – “uma narrativa sempre tensa de possibilidades de interpretação de verdades” – do ciclo de governos autoritários do País, com o foco no período do regime militar, entre 1964 e 1985, e seu corolário de perseguições e violações dos direitos humanos.

Reconheça-se que é dificílimo abordar tema tão sensível, sobretudo na turbulência da atual crise política e econômica, e pesado clima de frustrações, incertezas e ânimos exaltados. Também porque se trata de história recente marcada pelo duro embate político que degenerou na guerra interna, e sabemos que não há como revê-la sem revirar as lembranças do velho baú e seus tristes episódios de dor e sofrimento individual e coletivo, que se recusam a tornar-se passado.

Eliézer Rizzo tem credenciais de sobra para se posicionar com clareza nesse debate e é um dos raros intelectuais com o perfil ajustado para isso. Professor titular de Ciência Política e um dos fundadores do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp e da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, é um dos mais renomados pesquisadores em segurança e defesa nacional e publicou estudos fundamentais nessa área, dentre eles o de 2005 em que examina o processo de criação do Ministério da Defesa em substituição aos ministérios militares.

Mas, afinal, qual é a motivação singular do autor e, mais propriamente, sua tese central na análise dessa trama de eventos e suas diversas narrativas? Essencialmente, demonstrar que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) não cumpriu integralmente os objetivos da sua criação, sobretudo porque não atuou em conformidade com a inspiração e os propósitos da lei que a instituiu, ao decidir por conta própria investigar exclusivamente as ações repressivas do regime militar e desconsiderar as violações dos direitos humanos praticadas pelas organizações da esquerda revolucionária. Para ele – e esse é o fio condutor do estudo –, ao optar arbitrariamente por esse caminho a comissão cometeu grave equívoco em seu ponto de partida, deixando às escuras parte relevante da nossa memória histórica. Como diz, “ao escolher as vítimas de um lado, a CNV decretou ao esquecimento as vítimas do outro lado, como se fossem um nada”.

Segundo ele, além de dirigir seu foco de investigação unicamente para a atuação das Forças Armadas na época, a CNV extrapolou seu papel e resvalou para o revanchismo ao proclamar-se de fato e indevidamente como tribunal da justiça criminal, ou se investindo de atribuições que são exclusivas dos Poderes da República, como, por exemplo, ao inquirir por todos os meios e expor à execração pública as instituições militares, delas exigindo, além de documentos e relatórios circunstanciados sobre sua participação direta nos citados eventos, o pedido de perdão à Nação. Ainda na esteira dos equívocos, a CNV fez tabula rasa ou interpretação enviesada do que fora conquistado pela sociedade civil desarmada nas memoráveis jornadas de lutas em prol da redemocratização do País (a anistia, as eleições diretas e a Constituinte, dentre outras), desde meados dos anos 1970 até a Constituição de 1988. Como se essa história se iniciasse em 2013, tratou desde logo de contornar e, no limite, defender a alteração e até a revogação da Lei da Anistia de 1979, que foi encampada pela Constituição federal e reiterada em sua plenitude pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, que a julgou abrangente, justa e favorável a todos, e é acertadamente considerada por Eliézer como “uma pedra angular da democracia brasileira”.

Daí por que, aponta, a consequência mais grave dessa postura é que a comissão produziu resultados insatisfatórios, pois se ela logrou avanços na elucidação e na ampla divulgação dos graves episódios de violação dos direitos humanos de presos e perseguidos políticos durante os governos militares, deixou às escuras os que estão relacionados aos atos de violência dos seus opositores que adotaram o caminho da luta armada. Com isso, além de contribuir para conturbar ainda mais o já azedado ambiente político do País, apresentou ao final dos trabalhos um relatório sem a verdade completa sobre seu objeto de investigação.

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É possível que lancem dúvidas quanto à legitimidade e à isenção do autor para avaliar tão duramente a atuação da CNV e ele corre o risco de ser atacado até mesmo com vitupérios pelos representantes e simpatizantes da esquerda revolucionária de ontem e de hoje, que não consideram ilegítimo pegar em armas como forma de luta política nem reconhecem, portanto, direitos humanos iguais para suas eventuais vítimas. No limite, podem até acusá-lo de direitista ou porta-voz dos militares. Em contrapartida, ele pode tornar-se também alvo de duros ataques da parte dos representantes e simpatizantes da extrema direita militar e civil, igualmente adeptos do uso da violência, que podem acusá-lo de cúmplice da esquerda radical quando explicita sem tergiversar e com veemência seu repúdio às prisões ilegais, à tortura e aos assassinatos cometidos nos porões dos aparelhos de repressão sob o comando das Forças Armadas – envolvimento que lhes manchou a farda, como afirma – durante os anos de chumbo da ditadura.

Como sempre, a democracia encurralada pelos que por ela têm desprezo.