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Opinião|Depois do choque

A era Trump abre a possibilidade de se entenderem variadas forças e personalidades

Atualização:

Passada a primeira onda de choque, permanece impossível discutir política em qualquer canto do mundo sem mencionar o resultado eleitoral norte-americano, impensável há apenas alguns meses. Inútil qualquer consolo, como o de que a candidata democrata terminou à frente no voto popular: as idiossincrasias do sistema estavam dadas desde o começo e era com elas que se devia contar para eleger a contendora que prometia dar seguimento ao legado de Barack Obama e garantir um pouco mais de previsibilidade às coisas do mundo.

A “resistível ascensão” de Donald Trump só pode ser explicada por uma multiplicidade dos fatores. Se nos limitarmos à ideia, não de todo errada, de que ele conseguiu canalizar a raiva dos perdedores da globalização, não ultrapassaremos a fronteira da explicação da política pela economia. O mal-estar na globalização, que ora atinge o centro do sistema, tem dimensões valorativas e existenciais, remete à insegurança diante de uma economia-mundo que aparentemente se movimenta por si só, sem controles adequados ou suficientes.

A fórmula, imaginada para estágios anteriores da mundialização, continua eficaz para indicar sinteticamente o dilema contemporâneo: a economia torna-se crescentemente interdependente e só pode ser entendida em seu conjunto. A política, ao contrário, resta basicamente confinada ao espaço nacional, alimentando com isso perigosas fantasias regressistas. Os esforços de construção de realidades supranacionais, acima das “velhas” nações, ou tomam um rumo torto e demagógico, como no caso da integração latino-americana deste início de século, ou se veem submetidos a tensões fortíssimas, como no caso da integração europeia. 

Conhecemos com exatidão o poder explosivo de nacionalismos, fanatismos e rancores a ele associados. Basta cancelar o historicamente curto, mas simbolicamente denso, período de construção e expansão dos Estados de bem-estar social para ver a sucessão de confrontos a que tais nacionalismos deram origem, a ponto de se poder falar, até a derrota do nazi-fascismo, de uma só e ininterrupta guerra civil europeia. 

Pois bem, o setor regressivo das elites recorre ao repertório “nacional” de sempre, como se enormes carnificinas pudessem ser “narradas” de forma antes heroica do que bárbara, antes épica do que trágica. Por sua vez, as elites economicamente liberais não conseguem dar alguma resposta crível aos problemas de homens e mulheres comuns. Não conseguem dar uma direção intelectual e moral à integração da parte europeia do mundo: aparecem como tecnocracias distantes da cidadania, insensíveis à penúria dos países periféricos de sua própria área, para não falar da ausência de iniciativas que apaguem a “linha de fogo” que ronda o continente, da África à Ásia. 

A atitude de Angela Merkel diante dos refugiados de guerra foi uma breve lufada de ar fresco, logo interrompida pelas dificuldades internas e pelos arreganhos da extrema direita. Apesar disso, Merkel lembrou-nos que conservadores podem perfeitamente elaborar uma versão decente do bem comum. Aos desatentos convém dizer que a presidência Obama, do outro lado do Atlântico, representou o mesmo movimento positivo, reinterpretando a liderança americana como soft power e adequando-a, tanto quanto possível, às novas condições, que registram evidente declínio relativo da força econômica e política de seu país.

Interrompidos ou frustrados tais movimentos, restam de pé basicamente a força, a confrontação, a afirmação bruta do próprio interesse. A política democrática passa a conviver com obstáculos difíceis de superar: desaparece, ou fica gravemente ameaçada, a esfera da argumentação racional e dos interesses legítimos, substituída pela dos mitos irracionais e das ideias anacrônicas de nação, raça, etnia. Em última análise, é daí que vai extrair substância o conjunto diversificado de correntes que costumamos unificar, genericamente, com o termo “populismo”.

Parte considerável da esquerda flertou com aventuras desse tipo. Não é preciso de modo algum ir longe no tempo ou no espaço para identificar líderes e partidos que cultivaram efetivamente (como na Venezuela) ou sobretudo retoricamente (como no Brasil) ambições “antissistema”, como se a cotidiana recriação da vida pudesse prescindir das instituições democráticas formais. E não faltaram teóricos de toda parte – afinal, o mundo é um só, a circulação de ideias é fato corriqueiro da vida globalizada – que não só exaltaram o “populismo” latino-americano, como também o incluíram na limitada pauta de exportações da região, como mercadoria dotada do misterioso dom de reativar a luta de classes e abrir caminho para o socialismo ou certa ideia autoritária de socialismo.  Nessa forma de ver as coisas, os populismos de extrema direita conduziriam ao racismo, à xenofobia e à guerra – o que, diga-se de passagem, está basicamente certo, tanto quanto se pode prever. Os de esquerda, não se sabe bem a razão, conduziriam a resultados distintos – a uma “democracia de alta intensidade”, substantiva e não formal, desdenhosa dos valores “liberais”, que, no entanto, particularmente em nossa região e em nosso país já deviam ser patrimônio adquirido depois das experiências ditatoriais.

A emergência da era Trump, com seus desastres anunciados – os muros materiais e espirituais de contenção, o recuo em temas vitais, como energia e clima, a sintonia com líderes “providenciais” –, abre a possibilidade de entendimento entre forças e personalidades da mais variada inspiração, inclusive uma esquerda majoritariamente renovada. Em outros tempos cultivou-se a ideia do diálogo e do respeito, que nos permitiu atravessar o “deserto do real”, preservando os valores das modernas democracias. Os bárbaros parecem estar de novo às portas, o que reatualiza estratégias semelhantes às que nos levaram a vencê-los antes.

Opinião por Luiz Sérgio Henriques