Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|'Desafios da Sociedade Contemporânea'

Atualização:

No lançamento do livro de Gilberto Dupas sob o título em epígrafe, os professores Celso Lafer, autor do prefácio, e Tullo Vigevani, autor da apresentação dele, destacaram a figura de intelectual público do autor. O livro é, de fato, uma expressão do pensamento de alguém que centrou a sua vida na investigação da sociedade globalizada, de seus benefícios e malefícios; e na participação muito ativa em instituições de pesquisa e acadêmicas que lhe permitiram difundir os resultados de sua investigação. A Editora Unesp reuniu, num admirável trabalho de coleta e seleção, artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo, no Jornal da Tarde e na Folha de S.Paulo, entre 1985 e 2008, além de um resumo de conferência pronunciada em Paris, em reunião da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em novembro de 1999. Os textos permitem acompanhar as reflexões feitas por Dupas, assentadas em amplo conhecimento de relevante literatura filosófica, econômica e histórica, e na sua experiência como executivo no setor privado e em cargos públicos, notadamente durante a gestão do governo André Franco Montoro. A preocupação dominante nessas reflexões é a caracterização da globalização econômica e das tensões dela decorrentes, condensada na afirmação de que "o capitalismo atual convive com duas dialéticas centrais: concentração versus fragmentação e exclusão versus inclusão". A escala de investimentos necessários à liderança tecnológica de produtos e processos, bem como a necessidade de redes (networks) e mídias globais são responsáveis pelo processo de concentração. E é a mesma dinâmica do capitalismo, na qual as redes realizam um processo radical de busca de eficiência e conquista de mercados, que força a criação de uma onda de fragmentações - terceirizações, franquias e informalização. Nesse ambiente se dá a crescente incorporação de novos mercados pelas grandes corporações e a criação de um novo papel para as pequenas empresas que a elas se integram, ainda que basicamente subordinadas às suas decisões estratégicas globais (inclusão). Mas este mesmo processo gera um novo paradigma no mercado de trabalho, por efeito da tecnologia sobre o emprego (exclusão). E com isso se opera uma mudança de base na correlação de forças entre as classes sociais, com visível perda de poder dos sindicatos dos trabalhadores. A análise dessas contradições do capitalismo globalizado conduz Dupas, necessariamente, à discussão sobre o papel da tecnologia na sociedade contemporânea. Essa discussão, entrelaçada com a temática do "mito do progresso", foi objeto de O Mito do Progresso, editado pela Unesp em 2006, e a ela são dedicados inúmeros textos do livro. A análise desse papel o leva a duas ordens de considerações. O aparente paradoxo de um enorme progresso material conviver com aumento do desemprego, com população indigente em meio a luxo abundante e Estados em crise é por ele explicado pelo fato de o capitalismo global ter-se apossado por completo dos destinos da tecnologia, orientando-a exclusivamente para a criação de valor econômico. No mundo globalizado, com apoio da tecnologia da informação, a produção econômica moderna espalha sua norma, o consumo transforma-se em dever, um verdadeiro instrumento da busca, em curto prazo e a qualquer preço, da felicidade como um fim em si mesma. Com isso, a tecnologia é libertada das amarras filosóficas, torna-se autônoma em relação a valores éticos e normas morais definidos pela sociedade, constituindo um dos mais graves problemas com que ela deve se confrontar neste novo século. Por que é grave? Porque "a inexorabilidade do progresso técnico e da neutralidade dos cientistas - que têm enorme capacidade de criar inovações - não passa de sofismas (...). O progresso técnico não é determinista, nem são neutras as obras dos cientistas". Diante desse quadro, em que o mundo parece abandonar definitivamente as utopias e atirar-se de joelhos diante do mercado, o que fazer? Isso significa que qualquer proposta de transformação do mundo capitalista passou a ser uma ilusão irrealizável? A despeito do naufrágio do utópico socialismo com democracia participativa e diante do fracasso da tentativa de construção de um sistema socialista na URSS, Dupas responde: "Um outro mundo talvez seja possível". Para isso serve a utopia. Como nos versos de Eduardo Galeano, em que ele se apoia: "Para que serve a utopia? Ela está diante do horizonte. Me aproximo dois passos e ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos à frente. Por muito que eu caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso, para caminhar". O último dos artigos que compõem o livro trata da morte digna. Ele retrata a dignidade que foi a marca de Gilberto Dupas. Dignidade e coerência. Porque é um libelo contra a medicina tornada comércio: "É o novo reinado das milionárias UTIs, tornadas rotina hospitalar" enquanto "fazemos pouco para reverter a lógica de nosso sistema de produção e consumo". E especificamente em relação à dignidade, ele ainda ensina: "É preciso aprender a assumir a finitude da vida e o enigma do fim (...) temos que nos preparar para este fato inexorável e procurar viver da melhor maneira até lá (...). A morte, embora trágica para os que ficam, encarada com respeito, é uma fonte de sabedoria sem igual, estimula a ação e dá sentido à vida (...). A vida é tudo o que temos. E uma morte digna é um direito humano". Belo livro, de um intelectual público que conduziu a sua vida por uma trajetória de dignidade e manteve a utopia de um mundo melhor e mais justo. *Lenina Pomeranz é professora associada livre-docente da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo 

Opinião por Lenina Pomeranz