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Opinião|‘Deus em Questões’

Em texto estimulante, Frossard mergulha na raiz existencial da liberdade: o amor

Foto do author Carlos Alberto Di Franco
Atualização:

Dia 8 de julho de 1935: um rapaz de 20 anos que estava à procura de um amigo, com quem tinha combinado jantar, entrava, por engano, numa capela de Paris. Chamava-se André Frossard. Era filho do líder sindical L. O. Frossard, jornalista e primeiro-secretário do Partido Comunista Francês. Dizia-se “cético e ateu de extrema esquerda. Ainda mais do que cético, ainda mais do que ateu, indiferente e ocupado em coisa bem diversa do que um Deus que nem pensava mais negar”. Cinco minutos depois, saía de lá “católico, apostólico, romano, (...) transportado, levantado, retomado e envolvido pela onda de uma alegria inexaurível”.

O impacto existencial dessa conversão ficou registrado num livro que ocupou muito tempo as listas dos best-sellers: Deus Existe, Eu O Encontrei. André Frossard, jornalista de prestígio, cronista do Figaro, redator-chefe da revista Temps Présent e, de 1988 até sua morte, em 1997, membro da Academia Francesa de Letras, faz parte daquela estirpe de intelectuais que cinzelam a cultura dos povos. Por isso, Deus em Questões (Editora Quadrante, São Paulo), livro que acabo de reler com muito prazer, merece ser compartilhado com você, caro leitor.

Trata-se de um livro estimulante, quase interativo. O autor, armado de uma coragem afiada e de um bom humor cativante, assume um desafio inusitado. Frossard condensa, em 47 “questões”, cerca de 2 mil perguntas que lhe foram feitas por estudantes franceses. Em cada questão, expõe primeiro as objeções, assumindo lealmente o ponto de vista crítico, e depois formula respostas que extrai da sua “experiência da fé”. Por que viver? Ciência e fé são compatíveis? Deus é da esquerda ou da direita? A fé e o big-bang. A bioética. A aids. O sofrimento humano. A liberdade. Eis, respigados ao acaso, alguns dos temas que compõem um mosaico de grande atualidade jornalística.

A liberdade, adverte Frossard, “não consiste em fazer o que se tem vontade, mas também o que não se quereria, por bom senso, por respeito aos outros e muitas vezes por amor, primeiro princípio de tudo aquilo que é, foi ou será”.

“Essa liberdade ultrapassa todas as tendências, os gostos, o interesse pessoal, o egoísmo; vence tudo aquilo que efetivamente poderia ‘condicionar’ o ser humano e refulge com um brilho magnífico na renúncia de si próprio em favor do outro ou dos outros. Tem por divisa o dom de si e, por insígnia, a cruz de Cristo. Nesse sentido, a liberdade é um combate. É o ‘nome de guerra’ da caridade.”

Num mundo tantas vezes dominado por uma visão utilitária e hedonista, Frossard rasga o generoso horizonte da autêntica liberdade. De fato, poucas ideias gozam, da parte dos homens em geral, de apreço tão imediato e universal quanto a liberdade, mas nem todos se aprofundam igualmente na sua essência. Muitos se conformam com uma concepção superficial desse conceito: a liberdade sugere-lhes simples espontaneidade, ausência de compromissos, e isso já é suficiente. Na sua defesa da liberdade, contudo, Frossard não fica num conceito descomprometido, mas mergulha na raiz existencial da liberdade: o amor – amor a Deus e amor aos outros.

A liberdade, para ele, tem uma vertente transcendental, uma orientação para Deus. Não é que a liberdade deixe de ser uma realidade humana para se tornar só ou principalmente um conceito de tipo religioso. Bem ao contrário. Precisamente por dizer respeito a Deus e ao fim último da vida, essa concepção da liberdade é radicalmente humana.

No seu exercício, a liberdade põe em jogo todas as facetas da vida do homem: a sensibilidade, as paixões, a racionalidade e a graça de Deus, se esse homem estiver aberto ao mundo da graça. E é essa riqueza de elementos que faz o ato livre ser, para quem sabe olhar com olhos de profundidade, algo único, incomparável por seu valor e por sua riqueza essencial.

O livro de Frossard é de grande atualidade. O pêndulo da História aponta o reencontro do homem com suas raízes genuínas, sua inquieta peregrinação rumo ao Criador. Na verdade, a busca de Deus é um fato sociológico. A religião, sintoma de alienação na geração passada, ganha espaço nos dias que correm, sobretudo no mundo dos jovens. Deus, os pais, anjos e milagres são campeões da credibilidade no mundo dos adolescentes. Toda uma geração assiste, perplexa, a uma contrarrevolução comportamental protagonizada por seus filhos e netos.

Jornalistas competentes, imunes ao vírus da superficialidade, sabem decifrar o fenômeno religioso. Outros, reféns de um sectarismo anacrônico, sucumbem à patologia dos chavões. Alguns, por exemplo, equivocadamente imaginam que o influxo cristão sobre os assuntos temporais não deveria existir. Gostariam de ver a Igreja Católica reduzida a uma espécie de ONG da boa vontade. De acordo com essa óptica, a religião se reduziria ao culto, sobretudo privado. Entrincheirada no ambiente rarefeito das sacristias, estaria desprovida de qualquer possível projeção social. A História, no entanto, demonstra que a Igreja sempre será “sinal de contradição”. E os seus seguidores, embora iguais aos demais, são ao mesmo tempo fermento, sal, levedura.

A aparente tensão entre o cristão, cidadão do mundo, mas não refém do mundanismo, tem levantado uma falsa contraposição entre convicção e liberdade. Estabelece-se uma absurda incompatibilidade entre realidades que deveriam caminhar juntas. Entre uma pessoa de fé e um fanático existe uma fronteira nítida: o apreço pela liberdade. O fanático impõe, empenha-se em aliciar. A pessoa de fé, ao contrário, assenta serenamente em seus valores. Por isso a sua convicção não a move a impor, mas estimula a propor, a expor à livre aceitação dos outros as ideias que acredita dignas de serem compartilhadas.

A invulgar cultura do autor – seu tom coloquial, sem formalismo – e a sinceridade das suas reflexões são algumas notas características de um texto estimulante.

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

Jornalista