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Opinião|Ditadura do parlamentariado

Atualização:

A expressão “baixo clero”, de origem evidentemente eclesiástica, tem servido para a designação profana da maioria quase anônima da Câmara dos Deputados. O “baixo clero” não tem “cardeais”, por definição, assim como não tem barões, nem caciques, nem painhos (se quisermos metáforas menos canônicas e mais miscigenadas). No baixo “clero” movem-se figurantes qualificados, que têm direito a voto, mas, ainda assim, figurantes. Quando acontece de um deles se projetar para o estrelato, o que se tem são tipos como Severino Cavalcanti, aquele que chegou a presidir a Casa e se tornou célebre por uma fotografia umbilical. O leitor há de se lembrar, com certeza. O botão aberto no baixo da camisa, rente à calça, punha-lhe o umbigo a nu. O “baixo clero” é isto: o umbigo da Câmara dos Deputados, umbigo sempre presente (mas que só raramente se entrega aos holofotes).

Se a totalidade dos deputados acabou se diferenciando como uma categoria à parte na sociedade, como uma profissão, uma carreira, um ofício que conta até mesmo com plano de aposentadoria, o “baixo clero” é seu ventre fundamental. No “baixo clero” concentram-se as obsessões do corpo, ou melhor, da corporação supercorporativista a que foi elevado o conjunto organizadíssimo dos parlamentares que lá estão. São obsessões nem sempre declaradas, mas obsessivamente permanentes. São suas causas umbilicais. 

Não há como entender o Parlamento na Praça dos Três Poderes sem entender sua maioria de rostos desconhecidos. Seu poder é difuso, mas imenso. É dali que parte a demanda de jogar para o erário a conta de passagens aéreas dos cônjuges. Nasce lá a ideia de parlashopping. O “baixo clero” é contra o casamento gay, acha que a homofobia protege a família pátria e vocifera a favor da redução da maioridade penal. O “baixo clero” gosta de contratar assessores, gosta de ajuda de custo para comprar gasolina, gosta de polícia, gosta de tiro e gosta da Bíblia. Gosta muito. Se pudesse, gostaria de ser sagrado “baixo clero” de verdade, “baixo clero” sem aspas. O “baixo clero” é que elege o presidente da Casa. Às vezes é Severino com o umbigo de fora. Outras vezes... Bem, outras vezes é pior. 

Se você quiser descobrir a razão das medidas que vêm sendo aprovadas nesse aglomerado desconexo a que estão chamando de “reforma política”, não a procure em cartas programas ou nas ideologias. Essa razão está no espírito de corpo. Só o que as explica é o desejo de beneficiar os parlamentares em exercício de seus mandatos e dificultar a vida de quem está de fora. É por isso que basta um parlamentar para que o partido faça jus à verba partidária. É por isso que a Câmara dos Deputados não quer saber de reeleição no Poder Executivo, mas no Legislativo quer manter a reeleição sem limites. Tudo para impedir a alternância no poder (legislativo, bem entendido).

Na Câmara, renovação é palavra em extinção. De cada dez parlamentares que tentam a reeleição, sete chegam lá. Em 2014, 56% dos deputados se reelegeram. Outros 5% dos eleitos são “retornados”, quer dizer, políticos que ficaram um período sem mandato, normalmente empregados em algum ministério, e depois voltaram. Restam cerca de 40% para chamarmos de “novos”. Destes, metade é parente de “políticos tradicionais”. No fim de tanta conta, segundo os dados reunidos recentemente pela consultoria Patri, especializada em políticas públicas, apenas 77 deputados, num universo de 513, jamais exerceram cargo eletivo e não têm parentesco com os cardeais. A profissão de deputado aspira ser carreira vitalícia.

Para quem é um reles eleitor, o cenário da Casa incumbida de representar o povo mostra-se ruim, difícil, impenetrável, imperturbável e desanimador. Dependendo do ângulo pelo qual se olha o corpo dos parlamentares, dele se vê o umbigo. Dependendo do ponto de vista, vê-se claramente que, ao lado de representar a sociedade, esse corpo se articula para representar o próprio umbigo. O que se vê não é bem uma classe social descolada da vida cotidiana do País, mas algo talvez mais grave: uma casta. Seu nome há de ser “parlamentariado” (com o perdão do neologismo para um fenômeno tão antigo) e seu centro de gravidade está no “baixo clero”. 

Poderia ser pior? Poderia, sim. Tanto poderia ser pior que, efetivamente, é pior. No umbigo do parlamentariado moram os pesadelos do presente (os discursos de ódio, por exemplo) e é lá que está retida a chave do futuro. Desse organismo dependerá o que vai acontecer com o Brasil nos próximos meses. Não é pouca coisa. Dilma cai ou Dilma fica? Vai depender desse organismo.

Dilma Rousseff, a própria, parece não se dar conta. Parece acreditar que sua permanência no cargo resulta exclusivamente de sua determinação pessoal. “As pessoas caem quando estão dispostas a cair. Não estou. Não tem base para eu cair”, declarou ela em entrevista a Maria Cristina Frias, Valdo Cruz e Natuza Nery, publicada na Folha de S.Paulo de terça-feira. Suas palavras, mais que comoventes, chegam a ser plangentes. Um governante cai quando a sociedade está disposta a derrubá-lo e, no caso presente, cai se o PMDB quiser e se o “baixo clero” concordar. Dilma não foi avisada disso?

A Presidência da República não é mais protagonista. É refém. Quem dita a agenda brasileira hoje é o parlamentariado instalado na Câmara dos Deputados, não a vontade da presidente da República, por mais voluntariosa, valente e valorosa que seja essa mulher. 

Quem controla o pulso da conjuntura é o parlamentariado, por mais raivosas, interesseiras, desmedidas e gananciosas que sejam suas entranhas. Das esquisitices e das implicâncias pessoais de seus chefes dependerá a estabilidade da República. Do grau de deslumbramento reacionário de sua massa numerosa dependerá a saúde social do Brasil. O parlamentariado manda e a gente torce para que ele não exagere na insensatez.

*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

Opinião por Eugênio Bucci