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Diz uma coisa e faz outra

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Por Redação
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Consumou-se, com requintes de hipocrisia, o fechamento de ruas na capital com a sanção pelo prefeito Fernando Haddad de projeto de sua iniciativa aprovado pela Câmara Municipal. Um absurdo para o qual contribuiu a esmagadora maioria dos vereadores – 50 dos 55 representantes dos paulistanos –, em estreita colaboração com Haddad. Juntos, eles fizeram tudo a seu alcance para consagrar em lei a privatização de espaço público, com o disfarce de desculpas esfarrapadas destinadas a enganar, como se eles fossem bobos, os paulistanos prejudicados por esse privilégio.

Num jogo de cena em que demonstra pouco-caso pela capacidade de discernimento da população, o autor do substitutivo ao projeto original, vereador José Police Neto (PSD), com apoio de seus colegas, acolheu algumas emendas que parecem ter sido escolhidas a dedo para oferecer ao prefeito – por meio de vetos que não alterariam em nada os pontos básicos da malfadada proposta – a oportunidade de praticar a sua conhecida arte de se passar por bom moço.

Entre elas estava a que eliminou as restrições ao horário de fechamento das cancelas que impedem o acesso às ruas. Para os vereadores, o fechamento não devia ter limitações. Outras facilitavam ainda mais o projeto original de fechamento das ruas. Uma determinava que o bloqueio poderia ser feito desde que 70% dos moradores da rua em questão o aprovassem e comunicassem à Subprefeitura em cuja área ela se encontra. Outra estabelecia que a autoridade de trânsito teria 30 dias para, depois de analisar o caso, confirmar ou não o bloqueio.

Como o prefeito ficou com o direito de tratar desses assuntos na regulamentação da lei, com isso e com o poder de veto podia – fazendo boa figura – deixar tudo, ou quase, como queria desde o início. Foi exatamente o que ele fez, e ainda por cima com o capricho de publicar, na mesma edição do Diário Oficial da Cidade, na última sexta-feira, tanto os vetos quanto a regulamentação.

Com isso, as cancelas que bloqueiam o acesso às ruas fechadas só poderão ser instaladas após prévia autorização da Prefeitura. Depois de tudo isso alguém duvida que, tendo a maioria dos moradores aprovado o fechamento, o governo municipal criará dificuldades para aceitá-lo? Pelo menos, não este. Afinal, foi para tornar possível tal anomalia que a nova lei foi aprovada.

Mas o ponto no qual Haddad caprichou mesmo na sua vã tentativa de enganar os paulistanos foi o do horário em que as ruas permanecerão inacessíveis para os pedestres que não sejam do agrado ou da confiança dos moradores. Com o veto e a regulamentação desse item pelo prefeito, elas só poderão ficar fechadas das 22 às 6 horas. O argumento de Haddad, apresentado no dia seguinte à aprovação da lei, é uma mistura de hipocrisia e desprezo pela inteligência alheia. 

Segundo ele, o fechamento por 24 horas seria “uma ação inconstitucional”. Seria então o fechamento das 22 às 6 horas apenas um terço (8 horas) constitucional, e por isso aceitável?

Ele seria também “totalmente incoerente” com os princípios de sua gestão, centrada na ampliação dos espaços públicos, porque na prática representaria uma espécie de “privatização”. Essa é de cabo de esquadra. Como é possível, devem perguntar os paulistanos que ainda se dão ao trabalho de acompanhar as peripécias do prefeito, embaralhar as coisas a esse ponto? Haddad critica a privatização justamente a propósito de um projeto seu, transformado em lei, que privatiza ruas, ou seja, espaços públicos. É um escárnio ao direito da maioria dos paulistanos de circular por espaços que pertencem a todos, em benefício de alguns poucos.

A lei anterior que permitia o fechamento de ruas foi derrubada em 2014 pelo Tribunal de Justiça, porque a seu ver isso deveria ser de iniciativa do Executivo e não do Legislativo, como havia sido o caso. Para evitar a privatização do espaço público, que ele diz rejeitar, bastava então Haddad não enviar à Câmara projeto nesse sentido. Por que não fez isso?