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Opinião|Entre erros e acertos da imprensa

Se dependesse dos fundamentalistas, a propaganda substituiria a reportagem...

Atualização:

No dia 23 de junho, ao ser homenageada no Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo ( Abraji), em São Paulo, Elvira Lobato, uma das maiores e mais admiradas repórteres em atividade no Brasil, fez um desses discursos que a gente não esquece. Ela tinha nas mãos um texto preparado para a cerimônia, mas acabou falando de improviso, ainda que sempre consultando suas folhas de papel. Sem pretensão e sem pompa, pronunciou uma oração em defesa dos que apuram notícias de interesse público, no exercício de uma profissão inigualável, insubstituível e tão pouco reconhecida.

Na verdade, essa profissão vem sofrendo ataques covardes. “A imprensa está muito na berlinda ultimamente”, disse Elvira Lobato, como se abrisse parênteses entre um raciocínio e outro. “Eu sei que tem muito jornalista que fala em PIG, Partido da Imprensa Golpista, mas eu acho uma ofensa para todos nós, jornalistas. Eu me sinto profundamente ofendida quando alguém fala que a imprensa é golpista. Porque a imprensa somos nós. É o repórter que apura. É o redator que funde as matérias. É o editor que edita. Então todos nós somos golpistas? E aquele repórter que está lá, muito mais que a carga horária dele, nos finais de semana, buscando ser imparcial, às vezes desagrada a um lado, ou outro? E somos tachados de golpistas? Eu fico muito preocupada.”

Essas palavras merecem um artigo, no mínimo. Mereceriam mais do que isso, deveriam suscitar um exame de consciência entre os que agridem repórteres, deveriam pautar seminários nos sindicatos e nas faculdades, mas, por agora, um artigo dará conta do que é preciso pôr em relevo.

De início, é necessário registrar que a imprensa, vista em seu conjunto, não se saiu bem na cobertura do impeachment até aqui. Não restam mais dúvidas sobre os erros cometidos. Nos principais veículos do País, salvo exceções (não vamos desprezá-las), os argumentos a favor do impeachment ganharam mais destaque que os em defesa do mandato de Dilma Rousseff (eu mesmo apontei isso em Imprensa mouca, República louca, neste espaço em 14 de abril). Basta ver as páginas de jornais e revistas e contar os espaços. Basta conferir a minutagem nos noticiários e programas de televisão, em canais abertos e nos canais por assinatura. Lá pelas tantas, o imperativo (justo) de ser crítico em relação ao governo (qualquer que seja o governo) redundou no tratamento oposicionista de um debate que era de natureza institucional (e não partidário ou governamental).

No balanço geral (e todo balanço geral implica o risco da generalização), os principais órgãos de imprensa do Brasil, até aqui, não se saíram bem nesse quesito. Essa percepção é compartilhada por jornalistas sérios, e dos bons, que não se conformam. Alguns, que enxergam no processo de impeachment um “golpe parlamentar”, argumentam que a imprensa teria sido conivente com o tal “golpe”. Mesmo esses, no entanto, não cometem a impropriedade de tachar toda a imprensa de “golpista” e, por tabela, todos os jornalistas de lacaios de “patrões conspiradores”. Mesmo os mais críticos não são cegos nem selvagens. Quanto aos selvagens, em sua fúria fundamentalista, não veem nada e, por não verem nada, não conseguem ser críticos.

São os selvagens, e não os críticos, que inspiram preocupação. Seus slogans chegaram a contagiar os menos informados e inflamaram uma rejeição panfletária não apenas contra os “jornalões”, mas também contra o trabalho jornalístico. Seu credo obscurantista procura falar em nome da democracia, mas ao reduzir o jornalismo a uma forma elaborada de propaganda a serviço de conspiradores endinheirados rejeita a própria democracia.

É simples explicar por quê. Sob o pretexto de reprovar eventuais erros da imprensa, esse credo repele com violência o que nela são acertos. O que mais incendeia o ódio entre seus adeptos não é o desequilíbrio no tratamento dos argumentos pró e contra o impeachment (nisso, sim, houve erro), mas o fato notório de que os jornalistas cobriram com celeridade e independência as investigações que, no curso expandido do tempo, vão demonstrando as “tenebrosas transações” praticadas por seus ídolos. Para os que agora ofendem repórteres, o problema insuportável não está nos erros, mas nos acertos dos repórteres investigativos. Gostariam que os jornalistas, em lugar de fiscalizar o poder, batessem palmas para as autoridades santificadas por ideologias de matiz messiânico. É por essa rejeição de fundo à instituição da imprensa que são contra a democracia.

O problema deles está no que a imprensa tem de melhor: o esforço diário de jornalistas bem formados e persistentes para descobrir os segredos que o poder tenta esconder, os jornalistas que amam sua profissão e dela sobrevivem com dignidade e independência. Se dependesse dos fundamentalistas, a propaganda substituiria a reportagem e nenhuma dissidência teria autorização para se propagar.

Agora que sua propaganda um tanto fanática vai começando a fazer água, eles se sentem desorientados e aflitos. Sem ver saídas, aumentam a carga das ofensas contra os repórteres. Tentam vilanizar as redações, como se fosse delas a culpa integral pelo desmoronamento do que chamam solenemente de “projeto”. Falam alto, mas convencem cada vez menos.

O óbvio aos poucos se afirma. Se Dilma Rousseff está por um fio, isso não pode e não poderá ser debitado ao desequilíbrio que se verificou na publicação das opiniões a favor e contra o seu afastamento (as páginas dos jornais não têm tanto poder assim), mas porque Dilma perdeu sustentação política, antes de o processo de impeachment começar, por ter traído seus compromissos de campanha e por ter deixado seu governo à mercê de malfeitos. E aqui estamos nós. Os que mais cobram autocrítica dos órgãos de imprensa nunca toparam fazer a autocrítica do “projeto” que agora esmorece.

* EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP

Opinião por EUGÊNIO BUCCI