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Escalada autoritária

Com o presidencialismo interpretado à sua maneira, Erdogan dá um passo decisivo para, com base no poder pessoal, levar avante o seu plano de restabelecer a influência das correntes religiosas na política, com o desmonte progressivo do Estado laico instituído depois da 1.ª Guerra com o fim do Império Otomano

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Por Redação
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A vitória do presidente Recep Tayyip Erdogan no referendo sobre o projeto de reforma constitucional que troca o regime parlamentarista pelo presidencialista é mais uma etapa do processo de fortalecimento do poder pessoal do líder turco – já acusado por muitos de ser um sultão moderno –, iniciado com sua eleição em 2014. Desde então ele vem também exercendo de fato as funções de chefe de governo. Um caminho que tem tudo para levar a Turquia ao autoritarismo, o que terá repercussão muito além de suas fronteiras, dada a importância da posição estratégica desse país.

Não foi uma vitória folgada, com apenas pouco mais de 51%. Embora isso mostre a força da oposição, principalmente nas três principais cidades – Istambul, Izmir e Ancara –, Erdogan já deu mostras de que, além de ter inegável apoio de importantes setores da população, domina os principais instrumentos de poder e não hesita em lançar mão deles para impor suas diretrizes ao país. A oposição denunciou o clima de medo criado pelos partidários do presidente e os atos violentos de intimidação provocados por eles durante a campanha, além de uma decisão de última hora do Conselho Eleitoral, que passou a aceitar cédulas sem o carimbo oficial. Mas dificilmente seu pedido de impugnação do resultado do referendo, com base nesses fatos, terá algum resultado concreto.

Um dos principais argumentos dos defensores de Erdogan, repetido após a divulgação do resultado do referendo, é de que os poderes que o próximo presidente a ser eleito em 2019 terá no novo regime – e a essa altura poucos duvidam que seja ele mesmo – não poderão ser usados de forma indevida, porque a oposição sempre terá a possibilidade de obter maioria no Parlamento. O presidente, porém, já demonstrou por atos concretos que sabe atropelar as regras e dar a isso aparência de legalidade. Foi o que aconteceu por ocasião da frustrada tentativa de golpe de Estado, de julho do ano passado.

Esse movimento de militares descontentes caiu como uma luva na intenção de Erdogan, manifestada de várias formas, de fortalecer seu poder. O golpe, que deixou um saldo de 265 mortos e foi rapidamente sufocado com mão de ferro, serviu de pretexto para um vasto expurgo. Ele começou com os militares – 2.839 foram presos nos dias seguintes – e atingiu vários outros importantes setores além das Forças Armadas: Judiciário, polícia, universidades, meios de comunicação. Estima-se que foram detidas 50 mil pessoas e demitidos 100 mil funcionários.

Com o presidencialismo interpretado à sua maneira, Erdogan dá um passo decisivo para, com base no poder pessoal, levar avante o seu plano de restabelecer a influência das correntes religiosas na política, com o desmonte progressivo do Estado laico instituído depois da 1.ª Guerra com o fim do Império Otomano.

O presidente turco prossegue com determinação nessa direção, apesar da má repercussão internacional de seus atos, porque sabe ter nas mãos cartas importantes, decorrentes do peso e da privilegiada posição de seu país. Elas o tornam um elemento-chave na solução de problemas da maior gravidade, que dizem respeito tanto aos Estados Unidos e seus aliados na Europa como à Rússia e países do Oriente Médio.

A Turquia tem papel relevante na solução do conflito na Síria, no qual está envolvida de tal forma que de seus movimentos dependem tanto norte-americanos como russos, iranianos e sauditas. Sem falar na União Europeia, por causa do acordo que a faz reter em seu território, em troca de uma ajuda bilionária, é verdade, os refugiados que tentam chegar em especial à Alemanha. Ela é igualmente importante no complicado jogo de poder entre a Otan, da qual continua membro, e a Rússia no cenário europeu. Sem falar no combate ao terrorismo, do qual ela também é vítima.

Como todo jogo, porém, esse de Erdogan tem um limite. Os próximos lances vão mostrar até que ponto sua aventura autoritária é aceitável para os Estados Unidos e a União Europeia, que também têm cartas na manga.