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Funai e meio ambiente

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Por DENIS LERRER ROSENFIELD
3 min de leitura

A Funai publicou em 12/1, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa n.º 1, que versa sobre novas prerrogativas desse órgão nos processos de licenciamento ambiental de terras indígenas e de seu entorno. Mais precisamente, ela se autoinstitui como órgão licenciador para novos empreendimentos, avançando sobre as atribuições do Ibama.O momento de edição dessa instrução normativa não deixa de ser revelador, pois ocorreu às vésperas de a Câmara dos Deputados reanalisar o novo Código Florestal. É como se ela já se contrapusesse à nova lei antecipadamente, desconsiderando assim todo o trabalho desenvolvido na Câmara e no Senado. Seria tentado a dizer que estamos diante de um abuso "legislativo", que se faz por mero ato administrativo, contrapondo-se a leis verdadeiramente ditas, elaboradas e aprovadas no Congresso Nacional.Num primeiro momento, poder-se-ia ter a impressão de que a Funai estaria simplesmente agindo segundo suas competências, normatizando a questão ambiental dentro das terras indígenas. As aparências, porém, enganam, como se diz em linguagem popular. Nos artigos 1.º e 2.º, inciso I, fica manifesto que a atividade da Funai "no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos causadores de impactos ambientais e socioculturais a terras e povos indígenas" diz respeito a "terras indígenas ou em seu entorno". O problema reside, então, no "entorno", termo vago e impreciso. No artigo 9.º, § 1.º, há outra precisão importante, pois é dito que terras indígenas incluem "áreas em revisão de limites ou com reivindicações previamente qualificadas quanto à tradicionalidade da ocupação".Terras indígenas e "seu entorno" podem incluir, na verdade, qualquer extensão que um antropólogo e equipe considerarem como necessária à "reprodução física e cultural" das etnias em questão, o que significa tanto alguns poucos como dezenas de quilômetros. Não se pode esquecer de que qualquer demarcação de terras indígenas, para a Funai, diz respeito a milhares de hectares. Uma empresa envolvida num processo desses se torna, portanto, refém de qualquer tipo de arbitrariedade antropológico-administrativa, ficando à mercê de processos que se estenderiam certamente por anos. Em áreas próximas a terras indígenas passaria a Funai a agir como órgão licenciador, avançando sobre as funções do Ibama e dos órgãos ambientais estaduais.Para além do problema do entorno, apresenta-se, ainda, outra questão da maior relevância: a de que áreas indígenas incluem terras em processo de identificação e demarcação, assim como de "revisão de limites". Ou seja, qualquer terra que estiver em processo preparatório e preliminar de estudos de identificação e demarcação deverá ser objeto de estudo ambiental controlado pela Funai, que visa a impedir que empreendimentos sejam feitos nessa área.O absurdo chega às raias da inconstitucionalidade quando a instrução normativa estipula que terra indígena inclui "revisão de limites", eufemismo para burlar a determinação do STF quando do julgamento da Raposa-Serra do Sol, que veda a ampliação de terras indígenas. A Funai, por ato administrativo, desconsidera, com efeito, a decisão do STF!Há um componente que poderíamos chamar de governo x governo nessa instrução normativa, como se o próprio PAC, por exemplo, devesse ser solapado. Se essa instrução for efetivamente aplicada, empreendimentos como o de Belo Monte se tornarão inviáveis. Todo projeto de construção de hidrelétricas, sobretudo na Região Amazônica, será literalmente paralisado, se não inviabilizado.Ressalte-se que a instrução normativa vale para todo o País, e não apenas para a Região Amazônica. Considere-se que aproximadamente 13,5% do território nacional é constituído de terras indígenas, equivalentes a cerca de 110 milhões de hectares; considere-se, igualmente, que a Funai pensa aumentar significativamente esse número com novos processos de identificação e demarcação e ampliações. O resultado desse processo só poderá ser um prejuízo incalculável para novos empreendimentos, tanto nos setores da agropecuária e do agronegócio quanto na construção civil, em estradas, hidrelétricas e mineração. Note-se que não apenas empresas privadas serão prejudicadas, como também grandes empreendimentos estatais.Segundo o artigo 4.º, § 2.º, a Funai poderá "receber petições e solicitações de acompanhamento de empreendimentos ou atividades potencial e efetivamente causadoras de impactos ambientais e socioculturais a terras e povos indígenas assinadas por: a) Comunidades indígenas; b) Organizações indígenas; c) Organizações constituídas legalmente no Brasil cujo objetivo social tenha pertinência com a defesa dos povos indígenas ou a proteção do meio ambiente; d) Órgãos licenciadores; e) Ministério Público Federal; f) Demais interessados". Atente-se para os itens b e c, que inevitavelmente estabelecerão como partes o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e ONGs, tanto nacionais quanto internacionais, sediadas no País. Abre-se um enorme espaço de atuação administrativa e política para esses ditos movimentos sociais e ONGs. A politização ideológica fecha, então, esse quadro.A participação das comunidades indígenas potencialmente afetadas se fará durante toda a tramitação do processo, passando elas a opinar e mesmo decidir sobre a criação de um novo empreendimento público ou privado, não apenas em seu próprio território, como lhe é constitucionalmente assegurado, mas também em seu "entorno", o que é uma arbitrariedade.Nesse contexto, a última palavra em todo empreendimento terminará nas mãos de comunidades e entidades indígenas, por intermédio de suas organizações, movimentos sociais e ONGs nacionais e internacionais. O mais sensato a ser feito pelo Ministério da Justiça é a pura e simples revogação dessa instrução normativa, sob pena de acirramento de conflitos e paralisia econômica.

*PROFESSOR DE FILOSOFIA, NA UFRGS. E-MAIL:, DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR,