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Opinião|Golaço do STF

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Atualização:

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a exigência de autorização para a publicação de biografias. Intérprete fiel da alma constitucional e sintonizado com os tempos, liberou as biografias não autorizadas, encerrando polêmica criada por personalidades que discordavam de ter sua história publicada sem consentimento.  A relatora, ministra Cármen Lúcia, argumentou, no voto de 120 páginas, que a Constituição federal garante a liberdade de expressão, de pensamento, de criação artística e científica, além de proibir a censura. Ela ressaltou que a liberdade de expressão não pode ser suprimida pelo direito das pessoas públicas à privacidade e à intimidade. Reconheceu haver riscos de abusos. Segundo o tribunal, quem se sentir ofendido pode recorrer ao Judiciário para reivindicar indenizações, retratações e direitos de resposta. É a lógica correta. A ministra Rosa Weber, mais breve, foi certeira: “Controlar biografias implica tentar controlar a História e a própria memória”. É disso que se trata. Informação e intimidade, no jornalismo e no relato histórico, precisam estabelecer um diálogo respeitoso. O que não se pode é, em nome do direito à privacidade de uma pessoa, impedir a construção da História. O interesse público está acima do interesse privado. O direito à informação, pré-requisito da democracia, reclama o direito e o dever de informar. E os jornalistas e os historiadores demandam liberdade para cumprir o seu dever de informar. A privacidade das figuras públicas é sempre relativa. A notoriedade traz consigo a incontornável necessidade de transparência. “O poder”, dizia Rui Barbosa no seu belíssimo texto A imprensa e o Dever da Verdade, “não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro.” Clareza absoluta. É o mínimo que se deve exigir dos homens públicos. Algo análogo, creio, se aplica aos artistas, cantores, esportistas e figuras públicas em geral. Lembro-me, amigo leitor, de um episódio que deu o que falar. Frequentemente insinuada na cobertura dos jornais, a suposta relação amorosa de Rosemary Nóvoa de Noronha, ex-chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo, com o ex-presidente Lula finalmente foi escancarada na Folha de S.Paulo em discutida matéria: Poder de assessora vem de relação íntima com Lula, cravou a chamada de primeira página. A jornalista Suzana Singer, então ombudsman daquele jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra “amante”, a Folha contou que, nas 23 viagens internacionais em que Rosemary acompanhou Lula, a então primeira-dama, Marisa Letícia, nunca estava presente. Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o acesso de Rose à suíte presidencial nessas escapadas. Seria um relacionamento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e ele, candidato derrotado à Presidência da República. “A Folha invadiu a privacidade de Lula? Sim. Era necessário? Sim.” As respostas de Suzana Singer às interrogações éticas, curtas e diretas, são redondas. Concordo plenamente. O jornalismo brasileiro, ao contrário da imprensa norte-americana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos homens públicos. As escapulidas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas de jornalistas, nunca migraram para as manchetes dos jornais. O comportamento de Lula, no entanto, teve uma agravante. De acordo com a Polícia Federal, Rosemary conseguiu, entre outras coisas, colocar em postos estratégicos do governo amigos corruptos que vendiam pareceres jurídicos favoráveis a empresários. Lula, ainda presidente da República, prestou – mesmo que não soubesse disso – favores à quadrilha apadrinhada por Rose. Por sua influência, indicou os irmãos Paulo Vieira e Rubens Vieira para a direção, respectivamente, da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Os irmãos Vieira, ligados a gente do governo, passaram a vender facilidades a empresários que dependiam de decisões de Brasília. Rose, gabando-se de sua relação íntima com Lula, tinha influência no Banco do Brasil (BB). Trabalhou pela escolha do ex-presidente do BB e atual presidente da Petrobrás, Aldemir Bendine, e indicou diretores da instituição. Como foi possível que Rose, uma antiga secretária do PT, acumulasse tanto poder, a ponto de influenciar em setores nevrálgicos do governo? Tudo isso, rigorosamente de interesse social, somente ganhou dimensão pública graças ao trabalho da imprensa. Só isso, e não é pouco, já justificaria a invasão da privacidade do ex-presidente Lula. A defesa do direito à intimidade não pode ser usada para impedir a investigação e revelação pela imprensa de informações de evidente interesse público. O direito à privacidade não pode ser jamais um escudo protetor. Algo análogo se aplica às biografias. Seria legítimo expurgar o episódio Rose de uma eventual biografia de Lula? O ex-presidente poderia proibir a narrativa de fatos desagradáveis da sua vida? Seria correto impedir a sociedade de conhecer toda a história dos homens públicos, com suas luzes e suas sombras? Acho que não. E o Supremo Tribunal Federal, felizmente, votou a favor da democracia, da transparência histórica e da liberdade. O verdadeiro perfil dos homens públicos, apoiado na apuração jornalística e no empenho dos historiadores, contribui para a tessitura da verdade histórica. A sociedade não quer versões oficiais ou releases marqueteiros. Quer a força dos fatos. Onde for possível a censura prévia se esgueirar, se manifestar, não há plenitude de liberdade.  Golaço do STF.

*Carlos Alberto Di Franco é jornalista. E-mail: difranco@iics.org.br

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

Jornalista