Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Golpe à brasileira

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Por Marco Antonio Villa
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Às vésperas dos 50 anos do golpe militar torna-se necessário um resgate da História para entendermos o presente. Em 1964 o Brasil era um país politicamente repartido. Dividido e paralisado. Crise econômica, greves, ameaça de golpe militar, marasmo administrativo. O clima de radicalização era agravado por velhos adversários da democracia. A direita brasileira tinha uma relação de incompatibilidade com as urnas. Não conseguia conviver com uma democracia de massas num momento de profundas transformações. Temerosa do novo, buscava um antigo recurso: arrastar as Forças Armadas para o centro da luta política, dentro da velha tradição inaugurada pela República, que já havia nascido com um golpe de Estado.A esquerda comunista não ficava atrás. Sempre estivera nas vizinhanças dos quartéis, como em 1935, quando tentou depor Getúlio Vargas por meio de uma quartelada. Depois de 1945, buscou incessantemente o apoio dos militares, alcunhando alguns de "generais e almirantes do povo". Ser "do povo" era comungar com a política do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e estar pronto para atender ao chamado do partido numa eventual aventura golpista. As células clandestinas do PCB nas Forças Armadas eram apresentadas como uma demonstração de força política.À esquerda do PCB havia os adeptos da guerrilha. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) era um deles. Queria iniciar a luta armada e enviou, em março de 1964, o primeiro grupo de guerrilheiros para treinar na Academia Militar de Pequim. As Ligas Camponesas, que desejavam a reforma agrária "na lei ou na marra", organizaram campos de treinamento no País em 1962 - com militantes presos foram encontrados documentos que vinculavam a guerrilha a Cuba. Já os adeptos de Leonel Brizola julgavam que tinham ampla base militar entre soldados, marinheiros, cabos e sargentos.Assim, numa conjuntura radicalizada, esperava-se do presidente um ponto de equilíbrio político. Ledo engano. João Goulart articulava sua permanência na Presidência e necessitava emendar a Constituição. Sinalizava que tinha apoio nos quartéis para, se necessário, impor pela força a reeleição (que era proibida). Organizou um "dispositivo militar" que "cortaria a cabeça" da direita. Insistia em que não podia governar com um Congresso Nacional conservador, apesar de o seu partido, o PTB, ter a maior bancada na Câmara dos Deputados após o retorno do presidencialismo e não ter encaminhado à Casa os projetos de lei para tornar viáveis as reformas de base.Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para uso político, mas distantes da História. A associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) foi a principal delas. Nada mais falso. O autoritarismo aqui faz parte de uma tradição antidemocrática solidamente enraizada e que nasceu com o Positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia rondou o nosso país durante cem anos de República. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia num obstáculo à solução dos graves problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política. Como se a ampla discussão dos problemas fosse um entrave à ação.O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 - até o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) -, com toda a movimentação político-cultural que havia no País. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadura no mundo foi assim?Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes da luta armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heroicas ações. Num país sem memória, é muito fácil reescrever a História.A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, sequestros, ataques a instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum. Argumenta-se que não havia outro meio de resistir à ditadura a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos desses grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados pouco depois, quando ainda havia espaço democrático. Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político, e a simpatia pelo foquismo guevarista antecederam o AI-5, quando, de fato, houve o fechamento do regime. O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho) para o terrorismo de Estado e acabou sendo usado pela extrema direita como pretexto para justificar o injustificável: a barbárie repressiva.A luta pela democracia foi travada politicamente pelos movimentos populares, pela defesa da anistia, no movimento estudantil e nos sindicatos. Teve em setores da Igreja Católica importantes aliados, assim como entre os intelectuais, que protestavam contra a censura. E o MDB, este nada fez? E os seus militantes e parlamentares que foram perseguidos? E os cassados?Os militantes da luta armada construíram um discurso eficaz. Quem os questiona é tachado de adepto da ditadura. Assim, ficam protegidos de qualquer crítica e evitam o que tanto temem: o debate, a divergência, a pluralidade, enfim, a democracia. Mais: transformam a discussão política em questão pessoal, como se a discordância fosse uma espécie de desqualificação dos sofrimentos da prisão. Não há relação entre uma coisa e outra: criticar a luta armada não legitima o terrorismo de Estado. Temos de refutar as versões falaciosas. Romper o círculo de ferro construído, ainda em 1964, pelos adversários da democracia, tanto à esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, historicamente falando, daqueles que transformaram o antagonista em inimigo; o espaço da política, em espaço de guerra.*Marco Antonio Villa é historiador, autor do livro 'Ditadura à Brasileira' (Ed. Leya).