Este artigo complementa o meu anterior, Democracia de massa (Estadão, 7/7), e versa sobre temas presentes no clima eleitoral que vivemos: populismo, anarquia partidária e personalização da política. Fundamental no populismo é seu não comprometimento dogmático. Sua retórica é uma mistura vaga de devaneios simpáticos e vazios que dispensam análise inteligente e se estendem do socialismo ao nacionalismo da direita, na dosagem adequada ao público conjuntural. Expressa-se por imagens mitificadas, ideias difusas e slogans genéricos (o inimigo comum - judeus na Alemanha nazista, o império no bolivarianismo chavista -, povo x elites...), cujas vacuidades atendem a grupos e multidões. Sua organização e seus procedimentos variam: como impõe a cultura alemã, o populismo apoiou organizadamente o nazismo nos anos 1930; já o nosso funciona no atabalhoado ritmo brasileiro. Mas os resultados são similares: a fantasia acima da realidade e a dissolução da racionalidade individual no emocional coletivo amorfo, irracional e irresponsável. A sujeição do individual ponderado ao coletivo emocional pesa forte no sucesso eleitoral da fantasia demagógica. Sobretudo em contextos de mediocridade cultural e/ou em época de crise - situações em que partidos e políticos tendem às promessas salvacionistas vagas, de ampla aceitabilidade impensada, que raramente avançam ou nem sequer decolam, ao invés de proporem objetivos e práticas realistas, a serem avaliados no mercado político capacitado a fazê-lo ao abrigo da anestesia populista. Nosso confuso sistema partidário se ajusta bem nesse quadro surrealista. Realmente: seriam viáveis três dezenas de partidos com orientações ideológicas, programas e objetivos distintos? Não mesmo, aqui e no mundo. Os ideários e programas de nossos partidos - complacentes, admitamos que existam... - se estruturam retoricamente sobre a vacuidade amorfa, no estilo populista, do vulgar ao incrementado para o público mais bem informado. Alguém, de comunista radical a ultraconservador, é contra a redução da desigualdade, a melhora da educação e do atendimento à saúde, o desenvolvimento com controle da inflação e juros baixos, mais segurança e outros "lugares-comuns" dessa natureza...? O caos caleidoscópico das coligações nos 26 Estados e no Distrito Federal se explica por isto: nossos partidos são parametrados por ideários superficiais e genericamente similares - salvo um ou outro em questão temática, a ambiental, por exemplo. O que os inspira é o poder. As variadas e bizarras coligações regionais decorrem mais desse desiderato que do interesse nacional ou regional, que numa democracia sadia seriam mais bem atendidos pela coligação de partidos com ideários complementares e coerentes. Vídeo cômico divulgado no jornal Diário Catarinense apresenta suposta entrevista com dois políticos antagônicos, de Santa Catarina (Esperidião Amim, do PP, e Luiz Henrique da Silveira, do PMDB), interpretados pela mesma pessoa. Suas respostas vagas nada sugeriam que justificasse sua oposição política radical, até porque eles não se distinguem ideologicamente. O que justificaria o antagonismo, além do poder? A fragilidade psicopolítica popular explica o sucesso de políticos hábeis na retórica ilusória e a inconsistência conceitual do confuso sistema partidário brasileiro, no qual se insere a vacuidade genérica do populismo, explica nossa carnavalesca infidelidade partidária. De fato: fidelidade por quê, já que os partidos se assemelham em seus vazios ideológicos e programáticos e são mais propensos aos "arranjos" de acesso ao poder do que às medidas de interesse nacional e regional, eventualmente antipáticas no cenário eleitoral imediato...? Tudo isso tem seu preço: o populismo emocional, com suas imagens míticas e sua personalização da política, o caos partidário e a obsessão pelo poder, a que tudo se subordina, desacreditam as instituições democráticas e, se simultâneos com crises políticas, econômicas e sociais, acabam abrindo espaço às ilusões salvacionistas. "Quando os eleitores perderam a fé nos partidos (...) a mensagem nazista ofereceu uma esperança de futuro melhor (...)" (do livro Nazismo e Guerra, de Richard Bessel, sobre o colapso da República de Weimar e a ascensão do nazismo). Eram as crises socioeconômica e política levando à alternativa heterodoxa. O totalitarismo insano em que desembocou Weimar é incompatível com nossa cultura e até mesmo o matiz não radical de 1964 é hoje inverossímil. Mas não estamos livres de retrocessos institucionais típicos dos povos com preparo político vulnerável ao fascínio redentorista, praticado na moldura flexível entendida como democrática. Exemplo a que estamos abertos: a democracia (?) "dominada" por lideranças que usam o populismo emocional e a anarquia partidária para incrementar a estatização, a regulação da vida nacional e a centralização em detrimento do federalismo (a postergação da reforma tributária...), para "aparelhar" política e ideologicamente a máquina do Estado à margem da competência, para justificar a adoção de ilusões da democracia dita direta (conselhos, comissões tuteladas). E mais grave, para vilipendiar a democracia usando seus instrumentos: a sanção de leis pelo Congresso desacreditado, à semelhança da trágica "lei da capacitação" que institucionalizou a ditadura nazista. Venezuela e Argentina viveram versões recentes dessas usurpações, é bem verdade que menos radicais. Sempre com ingerência constritiva nos meios de comunicação e nos Poderes Legislativos. O quadro preocupa e sugere a pergunta: a dinâmica do preparo do povo e a da organização e estrutura conceitual doutrinária de nossos partidos inspiram esperança de que se possa vir a instituir uma verdadeira democracia, com uns poucos partidos consistentes e protagonistas competentes e íntegros, ausente o logro populista?Mario Cesar Flores é almirante.