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Opinião|Há pontes entre o ‘nunca antes’ e o ‘nunca mais’?

Atualização:

Nunca antes na História deste País tantos foram a tantas ruas de tantas cidades para dizer “nunca mais na História deste país”. O problema está posto, mais claro impossível: a rejeição ao governo federal alcança níveis insuportáveis e a presidente e seus ministros já não conseguem dar uma única resposta às ruas (que não seja um elogio patético às manifestações “pacíficas”), assim como não conseguem governar (mal dão conta de nomear um ministro da Justiça). O que ainda não se vê é a solução.

Se o problema não poderia ser mais escancarado, a solução demora. Quanto mais os fatos se precipitam, mais a solução se afasta no horizonte. A República desliza numa transição da qual é impossível retroceder, mas ninguém sabe onde vai parar. A solução só surgirá quando houver um diálogo público e aberto entre lideranças que saibam desprender-se das agendas partidárias, sem se desprenderem jamais da Constituição federal. Acontece que o diálogo pressupõe maturidade das lideranças, e temos tido escassez de maturidade – e também de boas lideranças.

Podemos dizer, sem nenhum exagero, que a sorte do Brasil depende desta possibilidade improvável: o diálogo maduro, responsável e eficaz. Fora disso, o que se avizinha é o acirramento das tensões, da polarização e do desgoverno, num caldo propício para golpistas de quinta categoria, de um lado e de outro. Isso mesmo: de um lado e de outro. Num extremo, temos os que querem pedir socorro às Forças Armadas. No outro, os que, sendo governistas ou oposicionistas, sonham com o puxadinho jurídico do “semiparlamentarismo”, numa tentativa de mudar as regras do jogo com o jogo em andamento. Há bruxos neófitos para todo lado, tanto a favor como contra o governo que aí está (sem estar em lugar algum). Há quem pense em fazer do novo ministro Lula o chefe de fato do governo, função para a qual não tem mandato. Iria ele morar de favor também no Palácio da Alvorada? Enquanto isso, o cenário só piora.

A hora pede um jejum nos apetites das máquinas partidárias e a mais estrita observância da lei. Improvisos não são recomendáveis.

Agora, nesta semana, o processo de impeachment tende a se acelerar no Congresso. Sendo previsto na norma constitucional, não se pode chamá-lo de golpe, mas há nele um improviso (e um vício ético) bastante complicado, que os líderes políticos não deveriam menosprezar. Conforme se avolumam as delações premiadas, com suas revelações escabrosas, o fundamento alegado para o pedido de impeachment, as pedaladas fiscais, vai se esvaziando. O detalhe contábil das pedaladas não guarda relação com a crise do governo. As razões que levam a opinião pública a se impacientar com Dilma Rousseff nada têm que ver com pedaladas. Como razão política (mais que jurídica) para afastar a presidente, as pedaladas assumem o aspecto de um artifício excêntrico.

A toda hora os ativistas do impeachment lembram que Fernando Collor também foi derrubado por um detalhe, a descoberta de um Fiat Elba pago com um dinheiro esquisito. Foi isso mesmo, mas a analogia não se aplica ao caso presente. O automóvel que frequentava a Casa da Dinda tinha vinculação orgânica direta com o esquema que maculou a alma daquele governo. Era um indício, mais um, de que havia algo de podre na República e, por isso, serviu legitimamente como argumento político para dar mais densidade ao pedido de afastamento (embora, no final, não tenha servido de prova jurídica aos olhos do STF). As pedaladas fiscais do governo Dilma não são um detalhe da mesma espécie. Não indicam a prática de corrupção. Cassar a presidente em função disso seria (ou será) arranjar um expediente lateral, um pretexto de ocasião, para se alcançar o que alegam ser uma “boa” causa.

Também aqui, os (“bons”) fins não justificam o meio (improvisado). Pegar o atalho de um detalhe formal pode não conduzir ao bom destino. Na democracia, a razão de uma decisão é tão ou mais importante que a própria decisão. Na democracia, não há boas decisões instruídas por motivações de ocasião. Uma decisão da envergadura de um impeachment deve conter em si as razões capazes de unificar (repactuar) o País, não de dividi-lo e conflagrá-lo ainda mais.

Sem pontes de diálogo, não há boas perspectivas. Recentemente o vice-presidente Michel Temer falou em pontes. Nada mais acertado. Mas é preciso levar em conta, também, que pontes servem para incluir, não para excluir. Pontes que deixem de fora setores expressivos da vida política nacional não unem, dividem.

Uma ponte, digamos, por hipótese, entre PMDB e PSDB não é necessariamente parte da solução. Pode ser apenas um conchavo entre parceiros que, sozinhos, são só parte do problema. Diante do caso de polícia em que se converteu a República, com corruptos saindo pelo ladrão e ladrões despencando das rampas de Brasília, a autoridade moral do PMDB, cujos caciques indiciados confraternizam em atos solenes posando de cardeais da virtude, é, no mínimo, limitada. O PMDB, como o PT, não apenas não pune os seus corruptos notórios, como os adula oficialmente. Quanto ao PSDB, bem, todo mundo está vendo: seus líderes foram hostilizados nas manifestações de domingo e contra o senador Aécio Neves, entre outros, pesam acusações sérias.

Uma ponte entre PSDB e PMDB não basta. (Sem falar que essa metáfora da ponte – que é boa, muito boa, desde Sófocles, há 2.500 anos – tem implicações canhestras nas terras brasileiras. Por aqui proliferam pontes superfaturadas, faraônicas e cheias de guichês de pedágio a preços igualmente faraônicos. Sejamos responsáveis – e prudentes – também no uso dessa metáfora.) As pontes de que o Brasil precisa devem ser menos restritivas e mais altas.

Se Dilma tem de cair – e talvez tenha –, que não seja por ter pedalado numa curva do Orçamento. E se o Brasil vai achar uma saída – e vai –, que não seja pelas pontes da esperteza.

A sorte do Brasil depende de um diálogo maduro, responsável e eficaz.

*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

Opinião por Eugênio BuccI